domingo, março 09, 2014

Maria Vicência - Uma empreendedora

1966 :O casamento do jovem Augusto com a dona
da Boate Estrela do Ponto 4 [, Maria Vicência].
Maria Vicência Alves nasceu em 02/06/22, natural de Parnaíba. Mulher destemida, exímia administradora que desde cedo enfrentou as dificuldades da vida. Saindo do bairro onde morava para outro, no novo endereço residencial começou a dar os primeiros passos em direção a tornar-se uma bem sucedida mulher de negócios. Passa de inquilina a proprietária, funda uma boate, tornando-a o lugar mais frequentado da beira do cais. Aos 44 anos, casa-se com um jovem, vinte e três anos mais novo, sofre a dor da traição, afasta-se por algum tempo do marido, mas sabe perdoar, apagando da sua vida essa mancha, reatando o casamento e dando continuidade a partir daí a uma linda história de amor, findando apenas com a sua morte em 1983, causada pela diabetes.

De personalidade calma, saudosa, caridosa, porém ciumenta. Gentilmente chamada por suas inquilinas de “madrinha”, devido à tradicional passagem de fogo na fogueira, ritual no qual duas pessoas juram chamar uma a outra de madrinha e afilhada ou comadre a partir daquele instante. Uma mulher com habilidade para os negócios, apostava em um empreendimento tendo a convicção de que o negócio era sucesso, tudo por conta da experiência. Seu Oliveira descreve da seguinte maneira a frequência com que se lembra de sua esposa: “É toda hora, qualquer coisa eu me lembro dela, qualquer coisa assim, que eu fizer, porque ela me ajudava muito, me orientava”. Ela dizia assim: - “vamos fazer isso, porque isso vai dar certo, isso aquilo outro e tal. É experiência”.

Cuidava de suas afilhadas quando estavam doentes, aplicando-lhes injeção e dando antibiótico. O pagamento só era efetuado quando as moças pudessem pagar; a assistência à saúde mais próxima era a Santa Casa de Misericórdia, localizada à Rua Padre Castelo Branco, no centro da cidade. “[...] Ela me arranjou um médico e um lugar na Santa Casa. Acho que nasci lá também. Só as desvalidas nascem na Santa Casa; senhora boa e decente tem filho é em casa, arrodeada da família, com o médico e parteira”.

O Companheiro, Augusto Machado de Oliveira, nasceu em Luzilândia-Piauí, em 07/06/45, saindo de sua terra natal por volta do mês de outubro ou novembro, devido ao falecimento de sua mãe. Inicialmente morou em Fortaleza-Ceará. Só posteriormente veio residir em Parnaíba, chegando aqui no dia 15/02/1959.

[...] Ele trabalhou como garçom em um bar chamado Tudo Azul. [...] Quinta-feira, passando de meia - noite e meia [...] um taxista de alcunha “Banana” chega ao bar, diante dele estava Cravo que o indagava:- “seu banana, onde é que a gente come uma panelada uma hora dessas? Ele disse: “só se for na Munguba”.

Diante da resposta do taxista Augusto pede para que ele o leve até lá. Chegando ao local, sacia sua vontade, depois dirigindo-se ao botequim que fica dentro do salão, aproxima-se do balcão e pede um guaraná. Entre um gole e outro do refrigerante acontecia a troca de olhares entre Vicência e Oliveira.

Oliveira estava trajando uma camisa branca com um “punzim” preto na altura do peito esquerdo, significando sinal de luto. Ao perceber Vicência pergunta se ele está de luto pela sua mulher. Ele responde dizendo que o sinal refere-se ao sentimento que guarda de sua mãe. Coincidência ou não, o nome da mãe de Augusto era o mesmo da proprietária da boate: Vicência. O nome da mãe de Vicência era Augusta, um Se enxerguei longe, foi porque me apoiei nos ombros de gigantes trocadilho acidental marcando, significativamente, a vida destes protagonistas. “Amor à primeira vista” - com tom forte e taxativo refere-se Augusto ao primeiro momento em que esteve diante de sua amada.

Depois de um simples encostar de balcão, após pedir um refrigerante e em um breve diálogo, nasce magicamente uma história de amor que perdurou até a morte dela e continua nas lembranças de seu Augusto. Logo depois do primeiro encontro os dois já estavam namorando e de lá para o altar não demorou muito tempo. A cerimônia que sela as juras de amor entre os nubentes ocorreu tanto na cerimônia religiosa, quanto no civil. A diferença de idade entre eles estava em torno de vinte e três anos. Este contraste de idade foi alvo de preconceito e comentários maldosos por parte dos frequentadores ou das meretrizes. “E me ajudou muito, me orientou demais, ela tinha quarenta e quatro anos e eu vinte e um, quando nós se „casamo‟ todo mundo dava conselho a ela que eu era muito novo, isso aquilo outro e tal...”.

Oliveira fala com certo orgulho de sua juventude e responsabilidade, nunca frequentou cabarés, nunca sentiu vontade de buscar prazer nestes lupanares, sua função na boate era única e exclusivamente servir aos fregueses “[...] eu era muito novo, isso aquilo outro e tal, mais eu, eu nunca bibi, nunca fumei, nunca andei em festa, vinha festa assim, porque vinha trabalhar, né?”.

A única coisa que incomodava Vicência era o fato de seu companheiro algum dia “passar na sua cara” que ele havia “limpado” o [eu] nome, devido ela morar num baixo meretrício. Augusto, para demonstrar que isso jamais viria a acontecer, pede a ela que nunca chegue a mencionar que ele era um Zé Ninguém. Entre o casal, o gostar, segundo Augusto, não existia, o que realmente os mantinham ligados era o amor “[...] toda vida a gente se tratava bem, eu gostava muito dela, a gente se amava mesmo, num tinha esse negócio de gostar não, a gente se amava mesmo”.

Uma descoberta surpreendente modifica por algum tempo o relacionamento de Augusto e Vicência. Ocorreu uma traição cometida pelo marido e que é descoberta por sua esposa. A esta relação extraconjugal ele prefere denominar de aventura, “É aventura, o home é chei de aventura é por isso que acontece essa traição; e mulher é menos, e ela se trair, ela fica mais falada, isso aquilo outro e tal”. Esse fato gerou uma discussão, culminando com o abandono do lar pelo aventureiro, ficando ausente por algum tempo. Retornando, é recebido de braços abertos e cheios de saudade pela mulher amada. Ele confessa que nunca foi traído pela esposa, até porque pra época um relacionamento fora do casamento, por parte da mulher, macula sua reputação, mesmo vivendo em um ambiente promíscuo como é o caso deles. Já para o homem tudo é mais fácil, tornando-se até natural tal fato.

A ordem natural da vida é: nascer, crescer, reproduzir e morrer; com a união de Oliveira e Vicência este processo não seguiu a ordem cronológica, porque o casamento não permitiu a geração de filhos; não se pode ter tudo na vida! Mas eles adotaram os sobrinhos de Vicência, criando-os como se filhos biológicos fossem. O menino não tinha apreço pelos estudos. Chegou a estudar até em escola particular. Contudo não teve jeito, sua vocação estava na ponta do pincel e na intimidade com as tintas. É pintor. A menina, já moça, tem vinte e seis anos e ainda é estudante.

O matrimônio será interrompido pelas fatalidades que o destino reserva e a certeza única da vida: a morte. Vicência morreu vítima de diabetes. É com semblante triste que Augusto fala da saudade que sente de sua amada “... você acredita que ainda hoje eu choro por ela, tô com vinte e dois anos de viúvo, nunca arranjei outra mulher, né? Pra viver em casa”.

O entrelaçamento das histórias individuais contribui para a ampliação de um campo de visão bem amplo, permitindo compreender a formação do espaço social. Os acontecimentos quando estudados isoladamente não possibilitam uma visão global do ambiente enquanto local que produz cultura, impossibilitando a compreensão das peculiaridades que permeiam a Munguba, enquanto que o entrelaçamento e o arrolamento das personagens em consonância com suas histórias e utilizadas como elo entre todo o elenco que compõe o cotidiano, possibilita o entendimento acerca do dia-a-dia que enlaça e constitui a realidade dos laços afetivos ou não que contribuíram [para a] existência da Munguba.

Extraído da dissertação de mestrado em História do Brasil “Memórias do Cais: Parnaíba, a cidade, o rio e a prostituição (1940-1960)” de Erasmo Carlos Amorim Morais, orientação da Profa Dra. Maria do Amparo Borges Ferro. Universidade Federal do Piauí, 2012.

Edição do Jornal da Parnaíba
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