Curadores, historiadores, artistas e admiradores lembram que a obra de Francisco Galeno tem alegria e autenticidade, e leva o público a se encantar com sua personalidade.
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Artista plástico Galeno - (crédito: Iano Andrade/CB/D.A Press) |
O artista radicado em Brazlândia, que chegou à capital em 1965, aos 8
anos, para acompanhar o pai, que vinha trabalhar na construção, era, também, um
dos nomes de maior prestígio na arte do Planalto Central. Uma obra de Galeno
estava na bagagem da presidente Dilma Rousseff quando visitou a Casa Branca, em
2012. Era um presente para o então presidente americano, Barack Obama.
Galeno também assina a pintura As quatro estações, entregue em abril
deste ano para compor a nova coleção do Palácio do Planalto. "Ele levou um
tempo fazendo aquilo que sabia fazer melhor: arquitetura das cores, objetos
canônicos populares. Esse quadro é uma festa de bem-feito, essa pintura vai
virar um ícone para a cidade. É uma abstração afetiva, em que a cor define
muito dessa arquitetura porque utiliza objetos de herança popular dentro de um
palácio modernista", aponta a historiadora de arte Graça Ramos.
Brasília-Piauí
A última exposição individual de Galeno em Brasília foi em 2022, na
Referência Galeria de Arte, que representa o artista em Brasília. Tratava-se de
uma reunião de 45 objetos e pinturas realizados na última década, uma produção
recente feita na terra natal, o Delta do Parnaíba, para onde voltou nos últimos
anos em busca de inspiração nas próprias raízes. Arte por acaso, como brincou o
artista em entrevista, foi fruto de uma "residência autônoma" no
Piauí. Para a curadora Marília Panitz, que ajudou a organizar a exposição junto
com Onice Moraes, proprietária da galeria, a pintura de Galeno passava por
ligeira mudança devido ao retorno às origens.
A curadora acredita que Galeno só não era mais reconhecido
nacionalmente porque nunca saiu do circuito Brasília-Brazlândia-Delta do
Parnaíba. "Porque se estivesse no centro, ou se aparecesse como novidade do
Centro-Oeste agora, porque o Centro-Oeste está na moda, ele estaria super na
ponta", diz. "Ele fez muita coisa, expôs no exterior muitas vezes,
mas nunca chegou a ficar entre os grandes, como outros. É um pecado
geográfico".
A galerista Onice Moraes, da Referência Galeria de Arte, lembra o
quanto as raízes e a ancestralidade eram importantes na obra do artista.
"Ele mantém aquela lembrança, a memória da mãe rendeira, do pai que
trabalhava com madeira, com couro. E tudo isso ele trabalha de uma forma tão
delicada que, mesmo colocando sempre os mesmos elementos na obra, ele passa uma
imagem renovada. As pessoas gostam porque são manifestações muito verdadeiras,
espontâneas, muito íntimas da vida e da criação dele", explica Onice.
"Um homem bom"
O artista e curador Ralph Gehre aponta a obra de Galeno como
emblemática. "Um homem gentil, risonho, com princípios. A gente sempre
fala do artista, mas ali tem esse fato de ser um homem bom", diz. Gehre
fez a curadoria da exposição Galeno — Uma nova direção: estripulias, retrospectiva
que ocupou o Museu dos Correios em 2014. "O Galeno usufruiu de um
privilégio raro de ter o reconhecimento do próprio trabalho. É uma unanimidade
— as pessoas gostam, se identificam, reconhecem o trabalho dele. E isso não é
qualquer coisa", acredita.
Membro do comitê de indicação do Prêmio Pipa, curador da 29ª Bienal de
São Paulo, em 2010, junto com Moacir dos Anjos, e professor da Faculdade de
Arquitetura e Urbanismo de São Paulo (FAU/USP), Agnaldo Farias lamenta que
pouca gente fora de Brasília saiba da importância da obra de Galeno.
"Temos um problema sério de difusão da produção artística. É muito
limitada e ainda se dá prevalência a quem expõe no Rio e em São Paulo",
reconhece.
Francisco Galeno nunca chegou a estudar arte formalmente. Quando
começou a produzir, sempre soube em qual fonte bebia e quais elementos queria
extrair de lá. Não gostava de dar muitas explicações, preferia contar histórias
dos objetos que ganhavam as formas geométricas nas pinturas. "É
impressionante esse talento irrefreável que uma pessoa tem, e não precisa de
formação, ultrapassa tudo e produz um trabalho de uma qualidade muito grande.
Acho que o reconhecimento dele vai ser cada vez maior. É uma questão de tempo,
é fatal. É uma obra muito luminosa", garante Farias.
O também curador Marcus Lontra aponta Galeno como uma ponte em um mundo
dividido entre arte popular, erudita e regional. Quando surgiu, o artista não
se encaixava em nenhuma dessas categorias, mas reunia elementos de todas elas.
"Uma coisa tocante na obra dele é que é o grande artista do entorno. Não é
o pintor do Plano Piloto, nem do Lago Sul, é o pintor da cidade satélite da
Brasília que se forma em torno da utopia. O Galeno é a realidade poética do
satélite que virou estrela", acrescenta.
Desruptivo
Desde 2009, Francisco Galeno divide com Athos Bulcão a assinatura
artística das paredes da Igrejinha Nossa Senhora de Fátima, localizada na
quadra 308 Sul. Enquanto os azulejos de Bulcão embelezam a área externa da
igreja, as paredes internas foram pintadas por Galeno. Em uma referência à obra
de Alfredo Volpi, que pintou a primeira obra de arte no interior da igreja,
Galeno fez um retrato de Nossa Senhora de Fátima sem rosto e com uma pipa
no lugar das mãos. Em 1958, Volpi havia pintado a Virgem Maria segurando o
menino Jesus, ambos sem rosto. No entanto, após reações das alas mais
conservadoras da Igreja Católica, a arte foi apagada. Em 2009, Galeno foi
incumbido de pintar as paredes da Igrejinha e a arte permanece no local até
hoje.
"A arte dele é fundamental e transcende este momento. O painel de
Galeno tem resultado tão expressivo e determinante que se vale da arte
original do Volpi para propor um novo momento para o interior daqui",
afirma o arquiteto Fábio Chamon, 45 anos, morador da 308 sul. "Ele
não cria algo exatamente novo, ele se faz de uma referência histórica. Se você
observar, aqui as referências todas permanecem. Essa questão das pipas, das
cores, dos elementos, é algo extremamente lúdico. Envolve até festejos de
santos, de igreja católica, como São João", menciona.
Ildria de Santana Lima Simplício, 67, aposentada e moradora do Gama,
conheceu Francisco Galeno. "Desde 1974 venho aqui. Sobre as paredes, acho
algo divino. De uma suavidade, os desenhos, eles nos neutralizam de uma forma,
nos acalmam, nos fazem repensar nossas devoções em tudo. Ele foi a pessoa
certa, para ter feito essas artes", destaca.
O corpo de Galeno foi encontrado em casa, no Delta do Parnaíba, na
segunda-feira. Estava com dengue e queixou-se ao filho, João Galeno, que mora
no DF, de um mal-estar. Aconselhado a procurar um médico, Galeno parou de
responder aos telefonemas e mensagens na última quinta-feira. Na segunda, foi
encontrado pela mulher que faz a faxina na casa do artista.
Graça Ramos, que assina com Galeno o livro infantil Vamos voar as
trancinhas?, lembra que, há alguns anos, ele enfrentou um câncer e,
sem plano de saúde, contou com a ajuda de amigos para o tratamento, realizado
nos melhores hospitais. Sobreviveu, mas foi morto por um mosquito. "É um
homem que vem de uma origem simples para uma cidade em construção, que ele
próprio ajuda a construir, porque ele é parte de nossa riqueza vocabular
plástica".
*Estagiário sob a supervisão de Patrick Selvatti
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