sábado, maio 30, 2020

China: considerações sobre uma sociedade original! (Parte – 2)


Prof. Dr. Geraldo Filho (UFDPar – 28/05/2020)

No ocaso de Mao, consumido pela doença que lhe tirou a voz e debilitou os movimentos, Chou En-Lai e Deng Xiaoping começaram a arquitetar mudanças que contrastavam as políticas dele, orientando a China para outra direção!

Consciente da situação de subdesenvolvimento econômico e fragilidade militar na qual a China se encontrava, desde o século XIX, quando o império se fechou para a revolução industrial que se espalhava a partir da Inglaterra, Chou En-Lai traçou o caminho estratégico para consolidar a soberania e a independência da China após 1949, priorizando a adaptação pragmática a cada contexto geopolítico que se configurasse – seja na sua proximidade regional geográfica seja no mundo, dominado então por duas superpotências, Estados Unidos e União Soviética – deixando em segundo plano a ideologia radical de esquerda simbolizada por Mao, retrógrada em termos de desenvolvimento. Três momentos decisivos ilustram o percurso estratégico imaginado por Chou que culminou na China do século XXI.

Necessitando de apoio militar logo após a Revolução em 1949 a China se aliou a URSS, causando pânico no mundo da década de 50, com o pacto entre os dois gigantes comunistas. O primeiro com um ativo militar precioso e sem temor de usá-lo, a população (600 milhões há época); o segundo com um exército formidável e poderio nuclear.


Nos anos 60, a China começou a se afastar da URSS ao perceber que se posicionaria melhor no xadrez geopolítico da Guerra Fria se mantivesse equidistância relativa das duas superpotências rivais, buscando neutralizar qualquer risco de conflito na sua vizinhança, sobretudo na extensa fronteira com a URSS, sempre uma ameaça potencial de invasão, como acontecera no passado imperial (século XIX), quando o império czarista arrancou nacos generosos do território chinês.

Finalmente, nos anos 70, observando o fracasso econômico das economias dos países socialistas/comunistas, Chou preparou a aproximação definitiva com o mundo ocidental – ao abandonar sem constrangimento a retórica esquerdista que tanto fez sucesso entre os países subdesenvolvidos na década anterior – tecendo acordos políticos e econômicos com os Estados Unidos e com o grande aliado americano no oriente, o Japão, isolando assim a União Soviética. Começava a se desenhar o cenário para a grande virada que ocorreu depois de 1976.

Chou, que era apontado como o sucessor natural de Mao, morreu poucos meses antes dele, em 1976, mas teve tempo de elaborar a estratégia de desenvolvimento econômico e social conhecida como “As Quatro Grandes Modernizações”, que foi encampada e executada pelo outro excepcionalmente competente mandarim Deng Xiaoping, ao ascender ao comando da China, após aniquilar com rapidez a ala radical seguidora de Mao liderada pela viúva Jiang Qing (o Bando dos Quatro) a encarcerando e acabando em definitivo com a malfadada Revolução Cultural sob sua orientação.

O plano consistia em modernizar a agricultura, a indústria, ciência e tecnologia e as forças armadas. Com carência de recursos financeiros porém contando com a população, não mais como um ativo militar mas sim como um enorme mercado de trabalho a baixo custo (nada de leis trabalhistas ou previdência pública universais) e de consumo, a economia progressivamente se abriu para as empresas estrangeiras e os investimentos capitalistas. Ao tempo em que o governo enviou milhares de jovens para as melhores universidades ocidentais, com foco em desenvolvimento científico e tecnológico, preparando as gerações que conduziriam os destinos do país nas décadas seguintes, o transformando de uma sociedade agrária numa potência produtora de tecnologia de ponta em todos os setores (as universidades chinesas não ensinam mais teoria marxista para os estudantes, como no Brasil!), promovendo o reencontro da China moderna com o glorioso passado imperial, cujo destino manifesto, relembro, inerente ao “Mandato Celestial” outorgado ao imperador, era governar o mundo!

Duas frases são reveladoras do pensamento estratégico de Deng na condução da China pós Mao, que deixam transparecer o pragmatismo para perseguir objetivos! A fim de justificar as modernizações inspiradas por Chou En-Lai, que implicaram na introdução de reformas capitalistas na economia como um todo – acabando com a coletivização e estatização do campo e estimulando “joint ventures” (parcerias) com empresas ocidentais que quisessem se estabelecer no país atrás de um imenso mercado de trabalho barato, ávido por consumir (um sacrilégio para Mao!) – Deng afirmou: “Enriquecer é glorioso!”

Contra aqueles que opuseram resistência às reformas modernizadoras, com a acusação de “revisionismo, traidor dos princípios comunistas” representados por Mao, Deng Xiaoping, com argumentação pragmática que ficou famosa em defesa da abertura da economia para o mercado, proferiu a frase: “Para caçar o rato (a necessidade e a fome do povo chinês) não interessa a cor do gato (se comunista ou capitalista), o que importa é que ele cace o rato (seja eficiente e eficaz)!”

Sobre os escombros dos loucos anos comunistas de Mao, Chou En-Lai e Deng Xiaoping construíram a China como se conhece hoje. O Partido Comunista da China mantém esse nome porque foi com ele que se organizou a estrutura de poder governamental que conduziu em poucas décadas uma sociedade com população atual de 1,4 bilhões de indivíduos ao sucesso. Para o pragmatismo chinês o rótulo pouco importa! É parecido com o turista que vai ao México e compra a imagem de Nossa Senhora de Guadalupe, vendida com reverência como artesanato local, quando na verdade foi produzida em escala na China mas... e daí?... o que interessa ao artesão foi que ele vendeu e ficou feliz e o que importa para o turista é que ele vai voltar para casa satisfeito com uma lembrança da viagem!

Esta estrutura de poder governamental é uma ditadura?! Utilizado os conceitos sobre formas de governo que remontam no mundo ocidental à Grécia Clássica e aos escritos de Platão e Aristóteles, que forjaram a sociologia política que se conhece, sim, é uma ditadura! Porém, com características singulares e que para compreendê-la é necessário mais uma vez considerar o contexto da história chinesa e do ocidente.

Em geral ditaduras seculares são personalistas, girando em torno de um líder, semeando em regra grande instabilidade quando ocorrem as sucessões, favorecendo que sejam feitas no âmbito da família (podendo gerar dinastias) ou entre os auxiliares próximos ao ditador (insuflando conflitos e traições). No entanto, a estrutura de governo chinesa é uma ditadura secular legitimada por milênios de imperadores absolutistas consagrados pelo “Mandato Celestial”, que na prática nada mais era do que um ditador, cercado por uma excelente casta de burocratas profissionais (mandarins), admitidos em concursos públicos …

Um comentário:

Paje disse...

Meu Professor, simplesmente, o melhor.