O Senado é composto de 81
senadores. Na hora da apuração dos votos para a presidência da Casa (2/1/19),
eis a surpresa: 82 votos! Um voto foi fantasma. É o mesmo banditismo do tempo
do senador Pinheiro Machado (“o condestável da República”), que manipulava
eleições, no princípio do século 20.
Fraude inequívoca, que, pelas
leis vigentes, justificaria a imediata apuração. Mas o que fez o presidente dos
trabalhos? Sem nenhuma cerimônia, rasgou os dois votos “duvidosos” (não
envelopados), diante das câmeras, posto que comprovavam a materialidade do ato
delinquente, e os colocou no bolso. Completou, sem nenhuma preocupação com a
legalidade: “Vou levar para o túmulo”.
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David Samuel Alcolumbre Tobelem (Democratas). Senador pelo Amapá e, no biênio 2019-2020, também é o presidente do Senado e do Congresso Nacional do Brasil |
Alguns escrutinadores diziam
que eram “dois votos em Renan Calheiros”. Quem conhece o cacique Renan sabe que
isso é bem provável (“se non è vero, è bene trovato”). Dois dias antes da
eleição Renan falou em dar umas “porradas” em Tasso Jereissati (que pediu
votação aberta).
A Casa deliberou, por 50 a 2,
que os votos seriam abertos (públicos). Mas isso ocorreu sob a presidência de
um dos candidatos, que foi jogador e árbitro do jogo ao mesmo tempo. Arnaldo
diria que isso não pode! O presidente do STF, ministro Toffoli, anulou essa
sessão e o voto voltou a ser fechado.
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José Renan Vasconcelos Calheiros (MDB), é Senador por Alagoas, ex-presidente do Senado Federal |
O presidente da sessão, José
Maranhão, quando o circo estava pegando fogo, com microfones abertos, disparou,
como se estivesse em sua casa: “Vou dar uma mijadinha e já volto”. É a total
confusão entre a coisa pública e a privada!
Para completar o indecoroso e
deprimente espetáculo, um dos escrutinadores (fiscais) da eleição era nada mais
nada menos que um senador presidiário, condenado definitivamente por fraude,
que está cumprindo pena na “Papuda”, mas com o direito de continuar sendo
senador! Durma com um barulho desse!
Onde encontramos uma
explicação para tudo isso?
É a teoria da “cordialidade”
(do “homem cordial”, de Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil), uma
belíssima alegoria (ou metáfora), que nos permite compreender a formação das
elites políticas e empresariais extrativistas do nosso país.
Trata-se de uma ferramenta
intelectual, uma ficção capaz de explicar que o presente da nossa República
(dominada por agentes do Estado e do Mercado) ainda não se soltou das amarras
que o prendem ao passado colonial e escravagista (ver P. Meira Monteiro, Signo
e Desterro).
“A sociedade foi mal formada
nesta terra, desde as suas raízes” (H. Smith). Essa má formação se deve a
vários fatores, dentre eles há um problema de caráter, de personalidade. O
departamento de rapina das elites do poder comprova o quanto o “cordialismo”
(cordialidade no seu sentido pejorativo) está presente no atraso das nossas
instituições.
Na categoria mal compreendida
do “homem cordial” precisamos distinguir dois planos: ela conta com a máscara
da hospitalidade, da generosidade, da polidez (veja as flores de Kátia Abreu),
que esconde o total desapego às regras gerais e impessoais da civilidade (como
tirar da mesa do Senado a pasta dos trabalhos).
As elites extrativistas do
poder possuem absoluta aversão “ao ritualismo social” assim como às
formalidades. O que vale é seu voluntarismo. Com frequência seus caprichos
chegam à delinquência. No caso dos “82 votos”, o excedente, o extra, é pura
bandidagem da velha política degenerada.
Sérgio Buarque de Holanda não
escreveu um livro de criminologia. Ele não era criminólogo. Ele escreveu sobre
psicologia, sociologia e história. Da riqueza inesgotável das suas alegorias
podemos, entretanto, inferir traços criminológicos marcantes nos setores
bandidos das nossas elites do poder (políticas e empresariais), que estão
saqueando todo o restante da população brasileira composta de proprietários,
classes médias, trabalhador precarizado e excluídos.
O problema é o seguinte: com
o “cordialismo”, que é a cordialidade elevada à última potência, “não se criam
os bons princípios” (Sérgio Buarque, Raízes do Brasil). Não se cria a
civilidade, a boa e ética convivência em sociedade.
O cordialismo (que é sinônimo
de cordialidade mais banditismo ou pessoalismo) é um legado do período
colonial, regido pela “velha ordem” (patriarcal, familiarista, nepotista,
personalista e aristocrática). A pessoa “cordialista” fala e age com o coração,
sob impulso voluntarista, sob o império do amiguismo, do filhotismo, do
nepotismo, não da razão.
As elites “cordialistas” do
poder odeiam regramentos abstratos objetivos e impessoais (que são o sonho de
consumo das configurações das democracias liberais racionais) e atuam sob
manifesta incompatibilidade com os princípios republicanos que regem o modelo
de Estado contemplado na CF de 88 (moralidade, impessoalidade, legalidade,
publicidade e eficiência).
Sua sociabilidade é
inteiramente familiar, ou seja, seus atos, mesmo quando no exercício da função
pública, continuam expressando o que vem dos seus vínculos mais estreitos, das
suas relações mais próximas, mais íntimas (“vou te dar uma porrada”, “vou dar
uma mijadinha e já volto”, “os votos rasgados vão para o túmulo”, “vou presidir
a sessão que me beneficia”).
Em síntese, o “cordialismo”
emergente do conceito de “homem cordial”, consoante a bela alegoria de Sérgio
Buarque, para muito além da polidez que é sua máscara, revela-se inteiramente
incapaz de compreender as formas ritualizadas, formalizadas, das instituições e
do relacionamento social.
Todo o cenário
político-empresarial que exprime o núcleo duro das elites do poder
latino-americanas continua funcionando dessa aberrante maneira. Nos países mais
civilizados isso também ocorre, neles também existem barões-ladrões, mas em
grau bem menor, com controles mais rígidos.
Aqui o espetáculo da
bandalheira e da vulgaridade é um esculacho total! O bom é que o povo agora vê
e comenta as barbaridades das elites do poder nas redes sociais. E já sabe quem
serão os próximos que serão degolados nas eleições. Vamos faxinando!
Por Luiz Flávio Gomes
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