01. Nos EUA 1/3 da população já usou maconha; 4% a
usa frequentemente; de 3 a 5% da população mundial sempre se drogou (diz a
ONU); no Brasil o álcool e o tabaco criaram 40 milhões de dependentes; outras
drogas, 7 milhões; Suécia tem menos dependentes que Portugal; milhares de
pessoas morrem anualmente por causa das drogas no nosso país etc. Todos esses
números foram citados no debate organizado pelo Instituto Crack Nem Pensar e
Ajuris (RS), do qual participaram o deputado Osmar Terra, a antropóloga Alba
Zaluar e eu (sob a presidência de Luiz Matias Flach). O problema é grave, mas
não é novo (quase 3 milênios antes de Cristo o imperador chinês Shen Nung já
fazia uso de droga). O problema tem, pelo menos, 5 mil anos de vida. O recurso
retórico da emergência, da epidemia avassaladora, da peste corrosiva etc. Se
desfaz com a perspectiva histórica. Nenhuma sociedade nunca ficou livre das
drogas. Nem ficará (enquanto os humanos habitarem a Terra). A questão central
que coloquei foi a seguinte: de um lado da margem do rio há um gravíssimo
problema humano e social; do outro, todos queremos a drástica redução no número
de usuários de drogas assim como o seu controle. Daí a pergunta: qual é a ponte
que permite isso?
03. Os conservadores (nos EUA) acham tudo isso o apocalipse;
para os reformadores, é o alvorecer de uma nova era. No Colorado a maconha é
vendida desde o princípio do ano de 2014 e o apocalipse não veio. O povo
sufragou o partido Republicano, conservador, nas últimas eleições, mas, ao
mesmo tempo votou pela legalização da maconha em mais 2 estados e o Distrito
Federal, porque sabe que a política de guerra contra as drogas produziu
resultados nefastos: fomentou a violência e encheu os presídios (sem reduzir o
consumo ou a oferta). De qualquer modo, não se tem provas sobre se a
legalização aumentou ou diminuiu o número de usuários. Os efeitos da
legalização estão sendo estudados. O mundo todo está esperando por esses
resultados. O que se sabe por ora é que os capitalistas que entraram nesse ramo
estão ganhando muito dinheiro e que o poder público está arrecadando muita
receita com os impostos.
03. Independentemente do posicionamento de cada um
(favorável ou não à legalização), um aspecto que chama muito atenção, na
denominada revolução da cannabis, nos EUA, diz respeito ao como se chegou
a essa revolução. Trata-se de uma das mais renhidas vitórias da participação
cidadã na vida política norte-americana; a cidadania participativa é um dos
combustíveis que dão vida e brilho à democracia direta (participação direta do
povo nas decisões do País por meio de plebiscito, referendo ou iniciativa
popular). Em 1970, o Congresso norte-americano aprovou uma lei federal que
adequou a ordem jurídica interna à Convenção Única das Nações Unidas (sobre
drogas). No mesmo ano a cidadania participativa (membros da
sociedade civil) aprovou a NORML (Organização Nacional pela Legalização da
Maconha) (veja Mathus Ruiz e Piquer, Los legalizadores). Como se vê, a
luta cidadã de 1970 somente começou a colher vitórias muitos anos depois (mas
nunca desistiu da luta). "A guerra às drogas [decretada por Nixon, em
1971] começou em Washington (D. C.), e a proibição da maconha foi o motor dessa
guerra. Hoje acabamos com esse motor" (disse o diretor da ONG Drug Policy
Alliance, Malik Burnett - Folha 6/11/14: A11). A "ponte" da repressão
fracassou miseravelmente; tudo leva a crer que a ênfase deve ser dada à
educação (conscientização).
04. Seguindo a narrativa de Mathus Ruiz e Piquer
(citados), sabe-se que os movimentos cidadãos norte-americanos começaram
defendendo a despenalização do uso pessoal da maconha (retirada do assunto do
campo policial/judicial, levando-o para o campo da saúde pública), na década de
70 (essa política foi respaldada por Jimmy Carter). A partir de Reagan (anos
80) voltou o conservadorismo (tanto na economia, com o neoliberalismo, como na
área penal, com o populismo penal). Em 1996 aconteceu a primeira vitória dos
movimentos pró-legalização: Califórnia, por meio de plebiscito (de iniciativa
popular), aprovou o uso da maconha (55,6%) para fins medicinais. O
plebiscito (como instrumento da democracia direta, usado nos EUA desde 1904, em
Oregon) se mostrou hábil para o sucesso dos movimentos cidadãos. É importante
que se diga que a cannabis saiu do armário por força da cidadania
participativa (porque os políticos não têm tido coragem, até hoje, de sustentar
essa bandeira). Trata-se de um produto Made in [populus] USA. Não é
verdade que os plebiscitos são os instrumentos preferidos e exclusivos dos
ditadores. A democracia norte-americana e a Suíça os utilizam para fins
democráticos há mais de um século. Do plebiscito (tal qual o carro, o álcool, o
açúcar, a internet etc.) pode-se fazer bom uso ou mau uso. O humano é capaz de
todas as coisas.
05. Mesmo sem o respaldo dos políticos, os
movimentos Drug Policy Alliance e Marijuana Policy Project (apoiados por George
Soros e Peter Lewis) vêm obtendo vitórias em todas as eleições gerais (desde
1996), voto a voto. Foi feita uma pausa a partir de 11/9/01 (destruição das
Torres Gêmeas, por ataque terrorista), mas o movimento voltou com força com
Obama presidente (que nunca concordou com o foco policial/judicial frente ao
usuário). Para ele, em relação ao usuário deve preponderar o enfoque da
"saúde pública e privada". A política repressiva fracassou. Desde
1996, mais de 20 estados legalizaram a maconha para fins medicinais. O desafio
é legalizar referida droga em todos os EUA. Historicamente, todos os grandes
movimentos sociais alcançam vitórias depois de longos anos de luta (veja-se a
história do voto para a mulher). A primeira batalha reside dentro da opinião
pública: hoje 54% dos norte-americanos entendem que a cannabis deveria
ser legal (Centro de Investigações Pew). Para o Gallup, o apoio nacional seria
de 58% (Folha 6/11/14: A11), mesmo que a liberação possa aumentar o número de
usuários (no princípio). A maconha é menos perigosa que o álcool (pensam os
americanos).
06. Quatro informações (algumas discutíveis) que
hoje todos os americanos sabem abundantemente (veja Mathus Ruiz e Pirquer): (a)
a maconha não é mortífera; (b) é menos aditiva que o álcool, o cigarro e as
drogas duras; (c) não provoca overdose e (d) seu principal componente ativo é o
tetrahidrocannabinol (descoberto em 1964 por Mechoulam). Nos anos 70, os
americanos achavam (a) que a maconha era a "porta de entrada" no
mundo das drogas e (b) que era uma imoralidade usá-la (essas duas opiniões hoje
são bastante minoritárias nos EUA). A cannabis ganhou nova identidade
(por meio do conhecimento). Quais são os protagonistas principais de toda essa
mudança social? Ethan Nadelmann (diretor executivo da Drug Policy Alliance),
Joy Strickland (que nunca fumou maconha, mas teve um filho assassinado pelos
narcotraficantes), K. Khalatbari (que se converteu em um empresário do ramo),
A. Holcomb, que foi a responsável pela aprovação da proposta de legalização da
maconha em Washington, N. Franklin (ex-policial, que reconheceu desde logo o
fracasso da política repressiva), M. Kleiman (professor universitário crítico
da guerra contra as drogas), B. Kennedy (criador de um fundo capitalista que
investe na área), S. DeAngelo (o maior distribuidor de maconha para fins
medicinais), R. Paul (crítico do tema há mais de 30 anos), Fernando Henrique
Cardoso, C. Gavíria, E. Zedillo e Vargas LLosa (lutam em toda a América Latina
pela legalização da maconha); J. Mujica (presidente do Uruguai), Otto Pérez
Molina (presidente da Guatemala) e Juan Manuel Santos (Colômbia) etc.
07. Os novos consensos legalizadores em torno
da cannabis estão deixando para trás o "consenso
proibicionista" (que vem do princípio do século XX e que recrudesceu a
partir de 1970). Em 1969 (seguindo ainda Mathus Ruiz e Piquer, citados), com
efeito, apenas 12% (dos norte-americanos) apoiavam os movimentos
liberalizadores; por altura de 1980, o respaldo popular já havia dobrado (24%);
com a chegada do novo milênio, a parcela favorável chegou a 30%; em 2010, esse
patamar alcançou 41%; quatro anos depois, o posicionamento favorável se tornou
majoritário em todo País (entre 54 e 58%). As duas razões centrais para essa
significativa mudança na opinião pública são: (a) o fracasso absoluto da
política repressiva contra as drogas (os EUA, para 82% da população, perderam a
guerra contra as drogas) e (b) o êxito do uso da maconha para fins medicinais
(apoio de 90%, nesse caso). Os críticos (conservadores, saudosistas,
populistas) acham que essa onda avassaladora vai mudar. Todos estão aguardando
os efeitos concretos da liberação em Washington e Colorado. Ocorre que agora o
povo está muito mais informado sobre as drogas em geral (e sobre a maconha, em
particular). Perderam espaço (nessas sociedades avançadas) as políticas
públicas populistas e demagógicas, que prometem o paraíso com suas proibições e
entregam o inferno. Onde o povo continua desinformado, os traficantes vendem
drogas, enquanto os legisladores vendem o entorpecente do endurecimento da
legislação assim como do encarceramento massivo aloprado dos pobres e pequenos
traficantes. O que já está sendo aposentado nos países avançados (veja Daniel
N. Do Prado, Aliás), continua sendo bandeira no Brasil: triste país, tão
longe do conhecimento (da educação, da ciência e da cidadania) e tão perto dos
líderes conservadores que se aproveitam da e disseminam a ignorância. Foi um
ponto fora da curva a aprovação na CCJ do Senado (em 29.10.14), com apoio de
FHC, do projeto (a) que permite importação de derivados da maconha para uso
medicinal, (b) que distingue com maior clareza o usuário do traficante e (c)
que fixa critério para a internação voluntária.
Edição do Jornal da
Parnaíba
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Por professor Luiz Flávio Gomes
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