sábado, fevereiro 15, 2014

Munguba: a invenção de um lugar

Um lugar só é considerado como tal a partir do momento que alguém dá um significado a ele. Sendo assim, a significação dada a um espaço varia de acordo com as pessoas que o habitam, frequentam ou aqueles que só ouviram falar. (Aneliza de Brito Vaz)

A imagem [ao lado] é uma representação da fachada da boate estrela do ponto 4, espaço onde funcionou por quase duas décadas o cabaré da Munguba. Atualmente o espaço serve [servia, pois ruiu] para o encontro de boêmios e outras pessoas, não servindo, portanto, como lugar de prostituição. Embora tenhamos apresentado o bairro que guarda em si personagens, espaços, lembranças e histórias da prostituição e dos cabarés na beira do cais de Parnaíba, cabe uma pergunta: e o termo Munguba de onde vem, o que ele representa? Munguba – árvore da flora maranhense, também conhecida por mungubeira, o nome vem do tupi môguba (dicionário novo Aurélio). Depois passou a receber a denominação de Rua dos Barqueiros devido à presença constante destes trabalhadores na quitanda do seu Zé Fenelon.
Esta rua nesgada e curta tem uma história alegre, salpicada de lances pitorescos, com brigas e muito pau. Depois de varar o descampado da Quarenta, a rua teve início na quitanda do Zé Fenelon. Deus te guarde, era o nome da quitanda do Zé Fenelon. Era uma espécie de quitanda - loja, tudo ali tinha, desde fumo às calças de brim, desde a cachaça ao vestido de chita. Diariamente se aglomeravam os valentes barqueiros do Parnaíba que iam se abastecer de comestíveis e bebidas para as suas viagens do dia-a-dia na carreira do rio. Daí nasceu o seu nome: Rua dos Barqueiros. Assim como Quarenta foi o primeiro nome do atual bairro Mendonça Clark, o mesmo ocorreu com a Rua dos Barqueiros, onde estava localizada a Munguba.

[...] teve sua origem no arruado de casas da “Quarenta”, lugar “quente”, que não tinha dia nem hora pra começar o fuzuê, principalmente quando as festas vinham do dia anterior. Sempre foi uma rua nesgada, começando pelo estabelecimento de seu Zé Fenelon, hoje casa abandonada que serviu que quitanda-loja, onde eram fornecidas as mercadorias a centenas de embarcadiços, desde os fumos de mascar até as calças de brim JOFRE com atracas de pano reforçado e de fivelas de latão à moda de retranca que segura o cintão porta faca. Depois por causa de alguns pés de mangubeira plantadas à margem das calçadas das meia-águas, que eram muitas, passaram a chamar o local de “MONGUBA”, superando mesmo o cognome de “Quarenta” ou Antônia “quorenta”, que era o preço porquanto o “freguês” tinha de dar à filha por uma visita rápida. Também ainda existe (existia) uma casinha onde mora (morava) a primeira mulher que habitou o mundo – E-V-A. Trata-se de um telheiro mandando fazer às pressas para socorrer a Eva, rapariga velha habitante há muitos anos nas imediações da Munguba. O Coronel Sebastião Furtado mandou fazer a tegúrio e deu pra Eva morar até morrer. Mas a Rua dos Barqueiros é de fato o nome apropriado que ela merece, porque lá é que o aglomerado de embarcadiços se reunia, tanto para comprar como para dançar e beber nos dias do cotidiano. Não foi, portanto a Rua do Tamancão que erroneamente se dizia chamar rua dos barqueiros. A referência acima evidencia não, apenas, a origem da rua dos barqueiros, seu cotidiano, alguns de seus habitantes e espaços. Percebemos que sua história confunde-se com a do próprio bairro. Percebemos que o espaço que serviu para a prática da prostituição surgiu de forma lenta e gradual estando sua origem intimamente relacionada às festas oferecidas pela Munguba através da boate Estrela do Ponto 4, que surgiu provavelmente por volta de 1940. A sociedade parnaibana nutria preconceito pelo lugar. O ambiente era frequentado por pessoas de pouca instrução educacional, homens que desenvolviam trabalhos braçais e rústicos, desconhecendo os princípios de moral e bons costumes tão apregoados pala sociedade de Parnaíba, preocupando-se apenas com os desfrutes das festas e mulheres oferecidas pela Munguba.

Como a maioria das cidades portuárias, e Parnaíba não há de ser esta exceção, geralmente existe próximo à beira dos rios uma região onde se desenvolvia a prostituição. E essa atividade de comércio do corpo é alimentada pelos homens que viviam do mercantilismo frequente no cais. Entre os frequentadores mais assíduos da beira do cais parnaibano, encontramos a presença dos vareiros.
“era vareiro [...] aqui dava muito era vareiro!”
[...] o “vareiro”, propriamente dito, foi a pedra angular na formação do império comercial desta região, cabendo-lhe por isto mesmo lugar de destaque no encadeamento da ação aglutinadora em que de pronto se transformaria apesar de nenhuma qualidade de sentido intrinsecamente executivo por ele demonstrada, por motivos óbvios, o homem fluviário estava sempre na linha de frente, garantindo sua presença como fonte alimentadora de energia física na luta com suas barcas e nalguns casos passando até mesmo despercebido no torvelinho de sua faina diária... Era o vareiro que de repente se via banido do meio ambiente em sempre viveu para, sem qualquer alternativa, outra coisa não ter que fazer senão estirar a mão à caridade pública, já pela força do desemprego, já pela perseguição da fome que o acassoava de todos os lados e mais os filhos espúrios, herdados na noite negra de seu destino.” Percebemos o vareiro como um personagem importante na composição das tramas e urdiduras que envolvem o espaço do cais. O cotidiano do vareiro era assinalado pela presença marcante nas festas, na relação com as prostitutas, no trabalho diário, nos confrontos violentos com a polícia provocados pelas bebedeiras típicas destes ambientes noturnos na beira do cais, onde criam-se representações obre eles.

As lutas constantes entre embarcadiços e policiais marcaram época na então florescente cidade de Parnaíba, o único centro exportador do Piauí. Não existia, pode-se dizer razão profunda para a continuidade da guerra acirrada entre as duas classes, quando a causa principal das rusgas se assentava unicamente no desforço de cada lado se julgava no direito de tomar. Era a honra que precisava ser lavada, às custas do facão “comblain”, por um lado, e por outro, a troco do pau e da faca marinheira, para tirar o ranço do “canela preta féa da puta”.

Esta representação nos permitiu visualizar como se davam as relações sociais noturnas entre as pessoas mais simples e os que representam o poder e a ordem estabelecida socialmente, enfim, este é apenas um pedaço do cotidiano vivido no cais do Rio Igaraçu.

Ainda na região portuária percebemos que o lugar mais famoso de Parnaíba e que constantemente tinha presença marcante do vareiro era a Munguba, onde existiam inúmeras casas, constando em seu interior pequenos quartos que eram alugados para as prostitutas servindo para a prática do “amor livre” e ao conjunto dessas casas deu-se o nome de Munguba. Rago evoca o pensamento do artigo do jornal A Terra Livre, [de] 02/08/1907, que menciona o seguinte sobre o “amor livre”: O amor livre não significa a apropriação comum da mulher, mas quer dizer: a liberdade ilimitada para a mulher, como para o homem, de amar quem quiser a liberdade de concentrar sobre uma pessoa, antes que sobre outra, todos os afetos. Quer dizer noutros termos: subtrair-se a terrível tirania dos pais, dos parentes e dos seus substitutos, que querem impor-lhes um marido do gosto deles, para amar livremente objeto dos seus sonhos. A referência ao amor livre apresentado no texto acima recomenda que devem escapar a tirania de seus parentes e ter a possibilidade de escolher livremente seu amado.

Extraído da dissertação de Mestrado em História do Brasil “Memórias do Cais: Parnaíba, a cidade, o rio e a prostituição (1940-1960)” de Erasmo Carlos Amorim Morais, orientação da Profa Dra. Maria do Amparo Borges Ferro. Universidade Federal do Piauí, 2012.


Um comentário:

Piranhense. disse...

Ah que saudade da Munguba!Meu avô vendia colchões de junco e de linho para as moradoras de lá