Tragédia de Santa Maria (RS) poderá ocorrer também
no Piauí. Das
224 cidades do Piauí, apenas quatro
contam com quartel do Corpo de Bombeiros: Floriano,
Picos, Parnaíba e a capital, Teresina. A tragédia ocorrida em Santa Maria (RS) poderá
ocorrer no Piauí pela falta de efetivo.
Apenas 14% das 5.570 cidades brasileiras têm Corpo
de Bombeiros; Somente Rio, Distrito Federal e Amapá seguem padrão de segurança
internacional. Brasil tem 200 mil incêndios por ano, cerca de 500 por dia.
O Brasil ainda se recupera de uma tragédia
nacional: 241 pessoas, na maioria jovens, morreram no incêndio da boate Kiss,
em Santa Maria, Rio Grande do Sul. Isso foi há pouco mais de dois meses. Em uma
reportagem especial, o Fantástico faz um retrato das condições de trabalho dos
bombeiros em todo o país. Será que eles estão preparados para atender a
população?
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2º Batalhão do Corpo de Bombeiros Militar com sede em Parnaíba (PI) |
O fogo se alastra rapidamente. O incêndio é numa
empresa que recupera pneus, que são altamente inflamáveis e tóxicos. O combate
às chamas é improvisado com balde, água mineral e mangueiras que não alcançam o
foco do incêndio.
O fogo chega à casa vizinha. Sem nenhuma proteção,
três pessoas sobem no telhado, mas, de novo, não adianta nada. O incêndio
aconteceu em Bacabal, no interior do Maranhão. Na cidade de 100 mil habitantes,
não existe corpo de bombeiros. Então, como o fogo foi controlado?
Contar com a sorte pra apagar incêndios é comum na
Brasil. Segundo um estudo do Ministério da Ciência e Tecnologia, em parceria
com o Instituto de Pesquisas Tecnológicas de São Paulo (IPT), apenas 14% dos
5570 municípios do país têm bombeiros. “Nós temos aproximadamente 4,8 mil
cidades sem bombeiros. A situação é muito, muito crítica”, afirma o pesquisador
do IPT José Carlos Tomina.
Durante um mês, o Fantástico acompanhou essa
situação. Algumas cidades até têm bombeiro, mas são poucos e os equipamentos,
quando existem, estão caindo aos pedaços. A viatura do Corpo de Bombeiros é
velha e enferrujada. Se começar a escurecer, o veículo não pode rodar pela
cidade, porque nenhuma lâmpada acende.
Segundo o estudo do governo federal, acontecem, em
média, 200 mil incêndios por ano no Brasil. São mais de 500 por dia. Em
Tocantins, das 139 cidades do estado, apenas cinco têm bombeiros. E se
acontecer um incêndio em um prédio, vai faltar um equipamento importante: a
corporação não tem escadas do tipo Magirus, que ajudam no resgate de vítimas e
no combate a incêndios em lugares altos. Nem na capital, Palmas, de 228 mil
habitantes, existe essa escada.
“É uma deficiência sim. No passado, não se pensou
em resolver esse problema. O equipamento está sendo adquirido nesse momento”,
afirma o chefe do Estado Maior do Corpo de Bombeiros de Tocantins, coronel
Dodsley Tenório Vargas.
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Bombeiros prestando servição no litoral piauiense |
Na cidade de Floriano
(PI), que tem 57 mil habitantes, pode faltar o principal na hora de apagar
o fogo. O tanque de água do caminhão fica vazando o tempo todo. Por isso, mesmo
sem ocorrência, todo dia tem que ser recarregado. São cinco mil litros de água
por dia.
O caminhão é uma sucata. O freio não funciona
direito e não há cinto de segurança. “Essa
unidade também não tem sistema de rádio, não funciona o limpador de parabrisa.
A porta sem vidro. Não tem condições de atender emergência. Ele vai, mas
colocando em risco o tráfego”, destaca o presidente da Associação dos
Bombeiros Militares do Piauí, Francisco Silva.
A equipe do Fantástico acompanhou um dia de
trabalho dos bombeiros de Floriano.
Nenhum deles está habilitado para dirigir o caminhão.
“O comandante
geral sabe que os bombeiros dirigem sem permissão?”, perguntou o repórter. “Tanto
essa prática como outras condutas já foram informadas de maneira formal, mas o
que nós temos percebido é a total ausência de manifestação prática da
autoridade”, diz o capitão Anderson
Pereira, da Associação dos Bombeiros Militares do Piauí.
A precariedade do Corpo de Bombeiros do Piauí foi
constatada pelo Ministério Público do Trabalho. “Não fossem estabelecimentos de utilidade essencial para a segurança da
sociedade, esses estabelecimentos inclusive deveriam ter sido interditados, eles
não têm condições de prestar um mínimo atendimento à sociedade”, diz o
procurador do Piauí José Wellington
Soares.
Em Picos,
também no interior do Piauí, 73 mil habitantes, outro exemplo de péssimas
condições de trabalho: um caminhão bem antigo foi todo adaptado para armazenar
água. Foi feita uma espécie de piscina na carroceria. O que era para ser só um
quebra-galho virou permanente. “O que se
observa é que continua operando, como se fosse uma viatura de combate contra
incêndio”, aponta Pereira.
Em 2007, o governo do estado e o Ministério da
Justiça fecharam um convênio para construir uma nova sede da corporação, em
Picos. A equipe do Fantástico foi ver a obra indicada pelos próprios bombeiros,
que estaria parada desde 2010. O prédio está abandonado, as paredes estão
rachadas e o piso começou a trincar.
O Ministério da Justiça que mandou quase R$ 300 mil
para ajudar na construção da nova sede, agora apura porque tudo está parado e
se o dinheiro foi mesmo aplicado na obra. O Fantástico procurou o comandante-geral
dos bombeiros. “Não foram feitos,
digamos, a parte de projeto hidráulico, elétrico, de prevenção de combate a
incêndio. Não foi mais refeito o convênio e o governo do estado é quem vai
assumir aquela obra”, explica o comandante-geral
do Corpo de Bombeiros do Piauí, Manoel Bezerra dos Santos.
Das 224
cidades do Piauí, apenas quatro contam com quartel do Corpo de Bombeiros: Floriano, Picos, Parnaíba e a capital,
Teresina. As equipes de Floriano e
Picos, por exemplo, são responsáveis pelo socorro a municípios que ficam a
mais de 500 quilômetros de distância. “Em
quase todas as ocorrências, os danos materiais são completos”, destaca o
capitão Anderson Pereira.
Foi o que aconteceu na quarta-feira (3), em Piripiri, cidade com 61 mil habitantes.
Um incêndio destruiu uma casa em um bairro afastado. Maria dos Remédios Sousa,
de 40 anos, morreu carbonizada. Ela era doente e morava sozinha. Foram os
vizinhos que tentaram apagar o fogo. “O
bombeiro foi meu filho que pegou a mangueira e estava por cima aguando, apagando”,
diz a vizinha Francisca dos Remédios.
“É uma falta
de investimento do poder público. Infelizmente, os administradores não querem
ver a situação da comunidade”, afirma o promotor de justiça Nivaldo
Ribeiro.
Uma pesquisa do Ministério da Justiça mostra que,
no Piauí, há um bombeiro para cada
grupo de 9.430 habitantes. É a pior proporção do país. “O que se estabelece internacionalmente é que se tenha um bombeiro
para cada mil habitantes”, aponta o pesquisador José Carlos Tomina.
No Brasil, no que se refere a efetivo, apenas o
Distrito Federal e os estados do Amapá e do Rio de Janeiro seguem os padrões
internacionais de segurança. “O ideal
seria que todos os municípios tivessem postos de bombeiros. A ideia é que, em
sete minutos, no máximo, os bombeiros consigam chegar em qualquer emergência”,
avalia Tomina.
Em Minas Gerais, das 853 cidades, 799 não têm Corpo
de Bombeiros. Um delas é Jaboticatubas, a 60 quilômetros de Belo Horizonte. Em
fevereiro do ano passado, uma padaria da cidade pegou fogo. “Só Deus para apagar. E a chuva”, conta
o dono do estabelecimento, Maurilio Marques de Paula Santos.
O comerciante está indignado. Ele paga uma taxa de
incêndio ao governo do estado. Ano passado, o valor chegou a R$ 472, quase o
dobro do IPTU. Mas, quando precisou, os bombeiros vieram de outra cidade e o
fogo já tinha destruído tudo. “Gastou
duas horas para chegar aqui. Não tinha mais nada. Nem fumaça tinha mais”,
diz Maurilio.
Uma lei estadual de 2003 criou essa taxa de
incêndio para reforçar o orçamento dos bombeiros. Hoje, ela é cobrada de donos
de indústrias e de comércios que apresentam alto risco de incêndios em 80
cidades. Em 25 desses municípios, não há Corpo de Bombeiros. “É um absurdo. Se tivesse pelo menos o
serviço, ainda ia lá. Mas não tem. Se precisar do Corpo de Bombeiros, você não
tem a menor assistência”, afirma o dono da padaria.
O Ministério Público investiga supostas
irregularidades com o dinheiro arrecadado com a taxa de incêndio. Só no ano
passado, o total passou dos R$ 56 milhões. “Você tem que ter imediatamente o
serviço a sua disposição, sob pena de um enriquecimento até indevido do poder
público, que recebe a taxa e não entrega o serviço”, destaca o promotor de
justiça Eduardo Nepomuceno.
Fantástico: O
senhor acha justo o comerciante que não tem bombeiro na cidade dele pagar a
taxa de incêndio?
Capitão Frederico Pascoal (Corpo de Bombeiros-MG): Ele
está sendo atendido sim por uma unidade do Corpo de Bombeiros. Existem cidades
que não possuem unidade próxima e estas estão sim no nosso trabalho de
expansão.
Fantástico: Todo dinheiro da
taxa vem para o Corpo de Bombeiros?
Capitão Pascoal: Sim, o dinheiro da taxa é totalmente revertido ao Corpo
de Bombeiros. O dinheiro é gasto 50%, no mínimo, com investimentos. Além, é
lógico, do custeio de toda essa máquina, como, por exemplo, combustíveis,
material de limpeza, a manutenção do Corpo de Bombeiros.
Percorrendo o Brasil, o Fantástico encontrou outra
situação grave. Devido à falta de bombeiros, o trabalho de prevenção a
incêndios fica seriamente comprometido. Em grande parte do país, vistorias e
alvarás demoram pra sair. “Se estivessem
ocorrendo avaliações com rigor, muitos edifícios estariam em melhores
condições. Muitos estariam interditados e nós não teríamos 200 mil incêndios
por ano”, aponta Tomina.
Segundo o governador
do Piauí, a situação vai mudar. “Nós
convocamos os últimos 35 concursados recentemente. Já treinamos, qualificamos,
capacitamos e agora autorizamos um novo concurso público para os bombeiros do
Piauí”, afirmou Wilson Martins.
No cargo desde 2011, o comandante-geral dos
bombeiros do Piauí reconhece a precariedade. “Você tem que entender que aqui é um caso extremo. Não tem como. Eu vou
botar quem para dirigir o carro?”, pergunta Manoel Bezerra dos Santos. Essa
foi a resposta sobre o fato de bombeiros dirigirem caminhões sem carteira de
habilitação.
Quanto à falta de equipamentos e viaturas
sucateadas, ele diz: “O que tem chegado
aqui a gente tem procurado atender. Certamente, alguma coisa ou outra possa ter
passado despercebida”.
Para ele, quem tem que se esforçar são seus
subordinados, que comandam os bombeiros no interior. “Ele, comandante, solicita ao comandante aqui. Compete a ele vir aqui
na capital e ver. ‘Ó, comandante, eu preciso disso aqui para poder dar
agilidade nesse processo’. Ele tem lá dois carros pequenos para fazer vistoria.
Se ele não dá conta, sinto muito”, afirma Santos.
Na próxima quarta-feira (10), Santos e Flamengo do
Piauí têm jogo marcado pela Copa do Brasil, no estádio governador Alberto Silva, o Albertão, em Teresina. Há duas
semanas, um laudo dos bombeiros atestou que a partida não poderia ser realizada
e que o projeto do estádio não tem "garantia
de condições míninas de segurança contra incêndio e pânico".
Mas o comandante-geral decidiu liberar o jogo. “Analisei item por item. O estádio está em
condições de atender o jogo daquele dia 10. Essas imperfeições, com certeza,
até o dia 10, estarão todas, digamos assim, corrigidas”, garante. O
Fantástico não pôde entrar no estádio porque o local estaria passando por
reformas.
Sobre o incêndio em Bacabal (MA), especialistas
afirmam: foi sorte ninguém ter se ferido, em outubro passado. “Isso aí é uma
atitude de desespero, correndo risco, inclusive, depois de virarem vítimas”,
alerta o coronel da reserva do Corpo de Bombeiros de São Paulo Paulo Chaves de
Araújo.
Como Bacabal não tem Corpo de Bombeiros, quando
ocorre um incêndio desses, teria que vir uma equipe da capital, São Luís, que
fica a quase 250 quilômetros de distância.
Sabe o que aconteceu? O improviso chegou ao ponto
de o limpa-fossa ser usado para apagar o fogo. “Perguntaram: ‘Ei, aí é água?’. Eu digo ‘não, é fezes, mais ou menos
uns quatro mil litros de fezes’. ‘A gente está precisando, que aqui o fogo está
demais’”, relembra Jaelson Santos Souza.
E essa não foi a primeira vez que ele fez papel de
bombeiro. Um ano antes, ele tinha apagado um incêndio em um depósito de
reciclagem. “Não fica muito cheiroso não. O importante é resolver o problema”,
diz.
No Maranhão, em média, há um quartel de bombeiros
para cada 20 cidades.
“Por que não
tem mais bases do Corpo de Bombeiros no estado?”, pergunta o repórter.
“A grande
problemática é efetivo, tanto que o governo do estado está otimizando já. Temos
um concurso em andamento para a entrada de mais 150 homens neste ano e em 2014,
há uma previsão de mais 150 homens”, responde o comandante-geral do Corpo
de Bombeiros do Maranhão, coronel Wanderley Pereira.
Para profissionais que sempre foram vistos como
heróis, tanta precariedade causa vergonha. “O nosso bombeiro tem vergonha de
ser bombeiro. Hoje, o nosso bombeiro está trabalhando com aquela ausência
daquela força que nos move, que é a paixão, que é o amor de salvar e resgatar
as vidas alheias”, diz Anderson Pereira.
E qual seria a solução? “O maior problema é não ter regra, requisitos de desempenho e
fiscalização. Cada um faz o que quer”, aponta Araújo.
“Tem centenas
de boates Kiss funcionando no Brasil e é muito fácil de se repetir o que
aconteceu lá. Que a gente consiga tirar alguma lição dessa catástrofe, dessa
comoção nacional que aconteceu em Santa Maria”, afirma o pesquisador José
Carlos Tomina.
Jornal da Parnaíba | Fonte: Fantástico
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