Mandu Ladino resistiu aos portugueses até ser abatido por um
exército comandado pelo fazendeiro Bernardo Aguiar quando atravessava a nado o
Rio Igaraçu, em 1717, em Parnaíba.
Corria a segunda metade do século 17. O estado do Piauí
iniciava o seu povoamento a partir da penetração do gado oriundo da Bahia, de
Pernambuco e um pouco do Ceará. O boi ia em busca de pasto; atrás do boi vinha
o homem, abrindo picadas, erguendo currais, construindo palhoças, fazendo
filhos… e invariavelmente matando os nativos que viviam na região.
Nas sociedades constituídas a partir da pecuária, a moeda
corrente é o boi e a vida de uma rês, no mais das vezes, tem mais valor que
vida de um homem.
Por essa época habitava o Piauí o maior assassino de índios
e negros que o Brasil já conheceu: Domingos Jorge Velho. A coroa portuguesa lhe
concedeu dezenas de léguas de terra às margens do rio Poti como reconhecimento
pelos serviços prestados aos senhores de escravos e de terras. Foi do
Piauí, já em idade avançada, que Domingos Jorge Velho partiu, atendendo à
convocação do governo de Pernambuco, para aniquilar os negros insurretos do
Quilombo dos Palmares.
Jorge Velho não se cansava de afirmar: “Índio bom é índio
morto, pois mais traiçoeiro impossível. Já as índias servem pros afazeres
domésticos e pras necessidades sexuais”.
Foi o que se deu com a aldeia dos índios abelhas, assim
chamados porque conviviam harmonicamente com as abelhas teúbas na região. Os
homens de Bernardo chegaram pela madrugada na aldeia cuspindo fogo covardemente
sobre os índios ainda sonolentos. Como prova do feito levaram ao chefe os dois
filhos pequenos do cacique, únicos sobreviventes do massacre.
A mais velha, Aluhy, não se conformou e em poucos dias fugiu
da fazenda e voltou à aldeia, onde se deparou com a horrível cena dos cadáveres
de todos os seus entes queridos. Enterrou-os um a um em uma mesma cova, foi
recapturada e não mais ofereceu resistência. Seu mundo tinha desabado. Acabou
afeiçoando-se ao filho mais novo do fazendeiro, Miguel, que também se afeiçoou
a ela e com ela casou-se e teve uma filha.
O índio bom
O irmão mais novo de Aluhy tinha o nome de Mandu. Foi
entregue a um padre capuchinho de nome Lucé, que dirigia uma missão na aldeia
Boqueirão do Cariri, no sertão da Paraíba, e encontrava-se em desobriga pelo
alto Longá na oportunidade.
Padre Lucé tratava a todos, e em particular a Mandu, com
atenção e cordialidade. Ensinou-lhe o português, rudimentos do espanhol, a
reza, os costumes dos brancos e, devido à sua enorme esperteza, acrescentou-lhe
a alcunha de ladino. Nascia ali Mandu Ladino.
Durante oito anos, Mandu Ladino, que chegara à missão
aproximadamente com seis, viveu harmoniosamente com os índios cariris, com os
escravos e os padres, mas o seu espírito de liderança já se fazia presente nas
caçadas, no diálogo, nas brincadeiras. Não raro, Mandu voltava da caça com uma
jaguatirica sobre os ombros.
Essa harmonia foi rompida com a substituição de padre Lucé
por padre Martinho, que logo passou a maltratar e desrespeitar os nativos,
tratando-os com rispidez e combatendo violentamente as suas crenças e valores.
Padre Martinho cometeu o desatino de atear fogo em todas as imagens e símbolos
sagrados cultivados pelos indígenas, obrigando todos a assistir tal violência,
com armas apontadas para eles.
A resposta não tardou: numa madrugada padre Martinho acordou
assustado e viu que a sua igreja católica, símbolo da sua fé, tinha se
incendiado, com todos os seus santos. Ao redor da igreja, com tochas de fogo na
mão, dezenas de índios gritavam e dançavam ensandecidos. À frente deles estava
um menino de 14 anos: Mandu Ladino. Padre Martinho tentou impor-se perante os
insurretos, mas foi abatido por uma borduna na cabeça, vindo a falecer ali
mesmo.
Sob a liderança do menino feito homem, Mandu Ladino, mais de
uma dezena de índios cariris fugiram da missão. Nenhum deles tinha ideia de
para onde ir, a não ser Mandu. Era chegada a hora de fazer o caminho de volta,
ir em busca da sua história, retomar as pegadas do seu povo.
Após 29 dias – uma lua inteira – cinco guerreiros cariris
chegaram ao pé da serra da Ibiapaba, divisa de Piauí e Ceará. Os demais se
dispersaram, se agregaram a outras tribos ou morreram em combate com os homens
e as feras. Poucos, fracos e cansados, foram presas fáceis de fazendeiros, que
os capturaram como escravos.
Unir para lutar
Foi na condição de vaqueiro escravo da fazenda Alegrete que
Mandu Ladino passou os primeiros anos de retorno ao Piauí. Incontáveis vezes o
amarraram a um tronco de árvore para açoitá-lo com relho de couro cru até que a
pele virasse carne viva. Para evitar gangrena, davam-lhe um banho de sal grosso
que ele suportava silenciosamente.
Mandu Ladino logo percebeu que a quantidade de bois
aumentava na mesma proporção em que se reduzia o número de aldeias indígenas. A
conclusão era lógica: ou havia reação dos índios ou todos seriam dizimados,
reduzidos a pó. Isoladamente era impossível vencer o poderio militar e
logístico do branco, daí a necessidade de unir toda a nação indígena.
Foi pensando assim que estabeleceu contato, imitando o canto
dos sabiás para não ser delatado, com a tribo dos aranis, cujo cacique, Xerém,
teve uma filha assassinada pelo capataz da fazenda Alegrete. Tudo combinado por
código, em uma noite sem lua os aranis chegaram à fazenda, mataram
silenciosamente os cachorros, lançaram flechas incandescentes sobre as casas de
palha e, já com o auxílio de Mandu, justiçaram um a um os moradores, exceto as
mulheres, as crianças e o capataz, algoz de Mandu e assassino da filha do
cacique Xerém, que foi levado vivo para que fosse servido em um solene banquete
antropofágico.
A lenda de Mandu e a ação dos aranis se espalharam. Mandu em
vão tentou convencer os aranis a abandonar a aldeia. Logo, logo, os brancos
vieram com sede de vingança. Em inferioridade numérica e militar, Mandu
demonstrou o porquê da sua alcunha. Ora orientava os índios a matarem os
cavalos enquanto os brancos dormiam; ora mandava as índias tirarem caixas de
marimbondos para lançá-las sobre os brancos; ora armava ciladas em
desfiladeiros sem saída.
A aldeia aranis enfim foi vencida, com a morte do cacique
Xerém e da maioria dos guerreiros, mas Mandu conseguiu resistir e fugir com
cerca de 50 pessoas, vinte delas talhadas para a guerra. Mandu inicia a sua
saga visando à união da grande nação indígena para uma guerra sem trégua ao
branco invasor.
Na condição de novo cacique dos aranis, fato inédito para um
índio de outra tribo, Mandu desce o rio Piracuruca, onde propõe à tribo do
mesmo nome uma união de forças para combater o inimigo branco. Por essa época
já tinha tomado por esposa a bela índia Korena, viúva de um guerreiro aranis,
morto em combate.
Vitoriosos em mais uma ousada ação, os agora quase cem
guerreiros subiram a serra Grande, divisa com o Ceará, onde tentariam convencer
os índios acaraús, itapajés e pitiguaras a juntarem-se a eles. A missão foi
parcialmente exitosa, com a recusa taxativa de apenas uma das tribos.
Já formavam uma pequena e aguerrida nação: aranis,
piracurucas, itapajés, alguns acaraús, Mandu dos Abelhas, dois índios da antiga
cariri e alguns ex-escravos. Partiram para o litoral piauiense, no famoso delta
do Parnaiba, onde resistia bravamente a tribo dos tremembés. Unir-se a eles era
fundamental para conformar o exército imaginado por Mandu. Marcharam rumo ao
rio Parnaíba – o velho Punaré – e por ele o trajeto era feito mais facilmente
em balsas construídas com a madeira do buriti.
“Índios corsos” é como o branco invasor passou a chamar o
exército de Mandu, numa alusão depreciativa aos piratas do mar. Os guerreiros
indígenas, diferentemente dos piratas, tinham origem e tinham causa:
viver livremente em suas próprias terras.
No rastro de sangue que se formava em torno de Mandu, os
cadáveres do cunhado do ouvidor-geral do governo do Maranhão e do irmão e
herdeiro de Domingos Jorge Velho foram a senha para que os fazendeiros do Piauí
fossem até São Luís, a que o Piauí era subordinado, para solicitar intervenção
oficial e conter a marcha de Mandu Ladino.
A luta
Para formar o exército oficial dos brancos foram
disponibilizados 80 homens, 100 índios flecheiros, montarias, armamentos para
todos e víveres assegurados pelos fazendeiros, todos sob o comando do coronel
Souto Maior. A tropa resolveu marchar rumo ao rio Parnaíba para surpreender os
guerreiros de Mandu Ladino, que a essa altura subiam o rio de volta, vindo do
litoral para o poente.
De fato, só ao chegar em pleno litoral, Mandu veio a saber
que os índios tremembés haviam sido completamente aniquilados pela força de
quatro navios que chegaram à costa piauiense propondo amizade e os
surpreenderam, crédulos e desarmados. Foram todos mortos traiçoeiramente.
Com uma rede de informantes voluntários cada vez maior,
formada principalmente por índios escravos – os chamados índios mansos que ele
tanto odiava, mas que terminavam lhe prestando um grande serviço – Mandu soube
da existência da tropa oficial e resolveu, ele sim, tomar a iniciativa do combate.
A seu favor contava o fator surpresa. Ninguém em sã consciência esperava que
ele tomasse a iniciativa da luta. E ele assim o fez, ainda em terras
maranhenses, do lado de lá do Parnaiba, quando o inimigo estava desprevenido.
Contando com a colaboração de aliados entre os índios
flecheiros e com a ajuda da madrugada escura, Mandu Ladino comandou um combate
com as poderosas e surpresas forças armadas do Maranhão, e venceu-as
triunfalmente à base de flechas, paus, facões e pedras. A data provável da
batalha foi 12 de junho de 1712.
O massacre feriu de morte a autoridade do Estado e pôs em
xeque o cargo do governador do Maranhão, que de pronto autorizou o recrutamento
de 200 soldados brancos e – novidade – mandou adquirir a quantidade que fosse
necessária de malhas de ferro para cobrir as fardas dos soldados, tornando-os
praticamente imunes às flechas venenosas dos índios. Para comandar a guerra
convocou o fazendeiro Bernardo Aguiar, que dividiu o exército em quatro
pelotões de 50 homens, cada um comandado por um capitão da sua confiança. Por
ironia do destino, Bernardo foi o mandante do massacre que redundou no
assassinato de todos os índios abelhas.
Mandu Ladino, consciente da reação inimiga, resolveu
esconder-se, sumir de circulação, para recuperar as forças, descansar seus
guerreiros e amadurecer novas estratégias. Para tanto pediu guarida aos índios
tabajaras, que habitavam o pé da Serra da Ibiapaba, e acolheram Mandu e
seu exército num socavão de morro. Os ibiapavas não eram de confiança, eram dóceis
aliados do branco invasor, mas Mandu não tinha muitas opções.
A traição
O acordo durou alguns anos, até que Mandu começou a sentir
cheiro de traição no ar, pelo jeito esquivo dos líderes tabajaras, e as
ausências prolongadas do padre que dava assistência à aldeia. Não tardou a
chegar notícia dando conta da aproximação do exército de Bernardo. Sem
alternativa, Mandu comandou a retirada rumo ao nascente, mas apartou as
mulheres, crianças e anciãos, que seguiram por itinerário diverso do dos seus
guerreiros.
Fazer uma retirada estratégica com cerca de 100 guerreiros a
pé com um exército montado e bem nutrido no seu encalço não é tarefa fácil. Em
alguns dias Mandu foi alcançado e a batalha se verificou sangrenta em um vale
descampado, na localidade onde hoje é o município piauiense de Batalha. Além da
desvantagem militar e numérica, os índios não entendiam por que suas flechas
não atingiam o inimigo, ficando presas na sua couraça de ferro, sem
penetrar-lhes o corpo. Quando se deram conta de que deveriam mirar nas montarias
e não nos cavaleiros, a batalha já estava perdida. Cerca de 80 guerreiros
índios, a maioria dos cavalos e quase nenhum soldado estavam mortos. Mandu
estava entre os 20 guerreiros que conseguiram se evadir.
O exército de Bernardo saiu em seu encalço, não permitindo
que ele atravessasse o Parnaíba, rumo ao Maranhão. Mandu, seus 20 guerreiros,
mais sua mulher Korena, seu filho e as demais mulheres e crianças que haviam se
reagrupados tiveram como alternativa descer o rio rumo ao litoral, com o exército
à margem, atirando sempre. Terminou sendo abatido quando atravessava a nado o
Rio Igaraçu, provavelmente em 1717, em Parnaíba.
A morte de Mandu Ladino foi o fim da saga dos índios em
território piauiense. Hoje existem apenas raros vestígios, enterrados, da
passagem dos nativos por este solo. Todas as 150 tribos do Piauí foram
dizimadas, sendo este, o Rio Grande do Norte (mais o Distrito Federal) os
únicos Estados brasileiros onde não mais se registra a presença de nenhum dos
primeiros habitantes do Brasil. Mas a lenda do seu guerreiro maior não se
apagou, e algum dia será contada nas escolas do nosso país como parte
integrante da história oficial do Brasil.
Fonte: Livro Mandu Ladino de Anfrisio Neto Lobão Castelo
Branco.
Pedro Laurentino Reis Pereira, funcionário público no Piauí,
escritor e poeta
Um comentário:
História fodastica, primeira vez q vi completa, há tempos q eu queria fazer uma tatoo em homenagem à Mandu, mas não sabia a história completa.mt obrigado, tenho uma ascendência indígena fortíssima, precisamente dos antigos cariris, gostaria d v um texto sobre a atuação indígena dos cariris na Serra dos cariris velhos.
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