![]() |
| Luiz Flávio Gomes |
Onde há poder há resistência, mesmo nas
microrrelações de poder (Foucault). Quando não concordamos com um determinado
governo, nada mais legítimo que protestar (e desejar sua mudança pela via
democrática). Mas é de se lamentar quando a luta do povo (ainda que hercúlea)
fica pela metade. Se sabemos (pela história e pelos indicadores sociais) que
todos os governos fazem sempre praticamente a mesma coisa (preservação dos
interesses das classes sociais dominantes, ou seja, das relações de domínio e
de exploração, incluindo anomalamente muitas vezes a cleptocracia - a ladroagem
crua e nua), nossos protestos não deveriam ser dirigidos apenas contra o
governo plantonista (do PT no plano federal e do PSDB em alguns estados: SP,
PR, GO, MS e PA), sim, contra o sistema de dominação que é cruel no Brasil: em
1960 nosso Gini (ndice que mede a desigualdade) era de 0,50; chegou a 0,64 em
1988 (fruto da ditadura) e voltou para 0,51 em 2014 (número que significa
extrema desigualdade). Os países europeus, para se ter uma ideia, possuem Gini
médio de 0,30; os EUA, de 0,45.
As redes sociais prometem mais duas grandes
manifestações populares (13 e 15 de março). Fico feliz quando vejo o povo de
uma república cleptocrata (governada por ladrões poderosos) indo para as ruas.
Mais ainda quando a manifestação se legitima pela ausência de violência.
Vence-se, nesse caso, a inércia e o comodismo (assim como a servidão
voluntária, como dizia Boétie). Expressão de que somos seres sociais e também
políticos (Aristóteles). É crucial ter consciência de que numa república de
roubalheiras diárias como a nossa, jamais teremos mudanças sociais e melhoras
na democracia sem a participação popular. O consenso popular diz que os
partidos políticos não representam os interesses gerais (Rousseau está morto!).
Estão "vendidos" ao poder econômico (sobretudo via financiamento das
caríssimas campanhas eleitorais).
Poder político e poder econômico, desde o
nascimento do Estado moderno (na Inglaterra no século XVII; na França, no
século XVIII, quando a burguesia ascende ao poder), fundiram-se (para a preservação
dos seus poderes e privilégios). O aposto do poder político é o poder jurídico
(polícia, ministério público, juízes, tribunais etc.), que funciona
precariamente (porque não temos aqui o império da lei).
As classes sociais dominantes, de qualquer modo,
não dominam apenas por meio do Estado (que é manobrado e manipulado pelos reais
detentores do poder), senão também por outras instâncias de domínio (como
igrejas, escolas, meios de comunicação etc.) e pelos consensos em torno dos
seus valores. Antes da construção do Estado brasileiro (1822), as classes
dominantes (desde o feudalismo no solo português e durante todo o colonialismo
- 1500-1822) exerciam o poder por meio de várias instâncias (econômica,
política, jurídica, eclesiástica, valores difundidos na consciência coletiva
etc.). Com o nascimento do Estado alguns poderes lhe foram canalizados
(sobretudo o do propalado uso legítimo da força), mas a sociedade civil
continua com suas tradicionais relações de poder (patrão-empregado, igrejas,
mídias, marido-mulher etc.). Muita coisa já mudou (desde o feudalismo dos
nossos ancestrais), mas isso não significa que as alterações já terminaram. A
revolução, na verdade, apenas começou (Jaime Osorio, El Estado en el
centro de la mundialización: 33).
O governo não passa da manifestação visível do
Estado (é sua expressão mais escancarada). Por isso que é mais fácil
contestá-lo. Mas o que ignoramos normalmente é o lado invisível desse mesmo
Estado, que é a síntese das relações de poder e de domínio de classes (J. Osório,
citado). O Estado faz parte de toda essa engrenagem de produção e reprodução
das posições de poder (que disseminam e perpetuam as desigualdades). Esse é o
nó que temos que desatar (ou o Brasil nunca sairá do atoleiro em que se
encontra desde que foi descoberto).
Os indicadores sociais mostram evoluções (IDH em
1980 de 0,55, contra 0,72 em 2011; no mesmo período a expectativa de vida
passou de 62,5 anos para 73,5; a taxa de alfabetização subiu de 74,5 para 90,4;
a escolaridade saiu de 2,6 anos para 7,2; a renda per capita cresceu de 7.310
dólares para 10.200 - veja L. C. Bresser-Pereira, A construção política do
Brasil: 375), mas exageradamente lentas. O descompasso entre a realidade e a
expectativa geral é brutal. Pior: a frustração aumenta com as centenas de
percalços intermitentes (inflação alta, desemprego subindo, cleptocracia
instalada no poder, corrupção endêmica, desigualdade sistêmica, violência
epidêmica, justiça morosa, ausência do império da lei e por aí vai). As massas
têm motivos de sobra para se rebelarem. Mas nessas horas o poder econômico
dominante se esconde e deixa o "abacaxi" apenas nas mãos do poder
político. E o povo acha que é o poder político (o visível) que vai resolver seu
problema, ignorando que ele foi "cooptado" pelo poder econômico
dominante (que é o grande responsável pela produção e reprodução das
desigualdades, pela exploração dos dominados - parasitismo -, pela divisão
indevida do patrimônio público - patrimonialismo -, pela "compra" do
poder político - roubo da democracia cidadã -, pela roubalheira do erário
público - cleptocracia etc.).
Da redação do Jornal da
Parnaíba
Por Luiz Flávio Gomes

Nenhum comentário:
Postar um comentário