quinta-feira, outubro 03, 2013

Arquivo de dor: Parnaibano Mário Fontenelle, o fotógrafo de do Pres. JK

Mário Fontenelle, Filho do delta do Parnaíba, Piauí, e de Manoel Moreira Fontenelle e Maria José Dias Fontenelle. Mário Fontenelle fez as fotos mais importantes das obras com máquina dada por JK.

Quando abriu as três ou quatro caixas de papelão, mala e destino de Mário Fontenelle, a pesquisadora Raquel Cavalcante encontrou “um arquivo de dor”. O amontoado de equipamentos fotográficos, peças de madeira, papéis (uma infinidade de papéis), fotos, papel-contato, negativos, slides e estojos de filme fotográfico revelavam com letras de amargura e de abandono a história do mais importante fotógrafo da história da construção de Brasília, [o parnaibano Mário Fontenelle].

Fazia bem pouco tempo que ele havia morrido. As caixas de papelão estavam num canto do Lar dos Velhinhos Maria Madalena, onde ele passou os três últimos de seus 67 anos. Um pouco antes, atulhavam-se numa Variant encostada nos jardins do abrigo, lembra-se o fotógrafo Francisco Gualberto. Todo o Mário Fontenelle cabia dentro de um carro e ele já não tinha uma perna, a esquerda, amputada por conta de uma gangrena. Sofrera um derrame que paralisara o lado esquerdo do corpo.

O homem esquelético, cercado de equipamentos fotográficos e de desilusões, era o autor, nas palavras do fotógrafo e antropólogo Milton Guran, “da mais extraordinária fotografia do Brasil moderno, uma imagem seminal que simboliza o momento em que o brasileiro tomou posse efetiva do seu destino”.

Brasília - Cruzamento do Eixo Monumental
com o Eixo Rodoviário (foto histórica)
A foto a que Guran se refere é a do cruzamento do Eixo Monumental com o Eixo Rodoviário, o Eixão, o sinal da cruz do projeto de Lucio Costa. “Se Fontenelle não tivesse feito mais nada no mundo, durante a vida inteira, se tivesse feito só essa foto, ele já era merecedor de um lugar de primeira grandeza na história da fotografia brasileira”, continua Guran. “Por essa cidade passaram centenas de fotógrafos (durante a construção), mas só um teve o acaso, a sorte, a percepção e a presença de espírito de dizer ao cara do avião: ‘Volta, que eu vou fazer essa foto!”.

Era esse o homem que esperava a morte no Lar dos Velhinhos e que completaria 90 anos de nascimento no próximo 29, sexta-feira, e que será [foi] homenageado pelo Museu Vivo da Memória Candanga e pelo Arquivo Público do Distrito Federal.


Palácio da Alvorada, primeiro edifício de Brasília - A foto foi
feita um mês antes da inauguração do prédio, pelo fotógrafo
Mário Fontenelle e faz parte do Arquivo Público do DF
À espera de nada além do que viria depois do fim, Fontenelle recebeu uma inimaginável visita num dia da segunda quinzena de novembro de 1984. Depois de dez anos sem vir a Brasília, Lucio Costa voltou à cidade que inventou. Como sempre se faz quando se reencontra um lugar ou alguém que ficou marcado em nossas vidas, doutor Lucio quis saber do destino de pessoas que lhe tinham sido importantes. Perguntou por Mário Fontenelle e soube que ele estava num asilo. Quis visitá-lo.

Numa manhã, cedinho, Lucio Costa, os arquitetos Haroldo Pinheiro, Adeildo Viega de Lima e Maria Elisa Costa rumaram para o Maria Madalena. Entraram no quarto 18, que Fontenelle dividia com dois outros velhos. O fotógrafo não sabia da visita. “Quando ele viu doutor Lucio entrando no quarto ficou perplexo, mas imediatamente começou a conversar. Me lembro que ele já estava com dificuldades de movimento de um braço (o esquerdo), mas deitado na cama conseguia achar tudo o que queria. Foi sacando mochilas de debaixo da cama e tirando fotos. Num determinado momento, puxou uma escala (régua triangular usada em arquitetura). Ela já estava amarelada pelo tempo”, contou Pinheiro.

Juscelino Kubitschek, presidente da República, e o urbanista  Lúcio Costa, no marco zero do Eixo Monumental. Por Mário Fontenelli.
“O senhor se lembra disso?”, perguntou Fontenelle. “É uma régua de escala”, respondeu Lucio Costa, sem entender muito bem a razão do objeto e da pergunta. “Roubei do senhor na Novacap e até hoje guardo de lembrança do senhor.” Caiu um silêncio sobre o quarto. Quase encostados na parede, paralisados, como se assistissem a uma celebração, estavam os três acompanhantes de Lucio Costa. Conversaram um pouco mais, Maria Elisa fez a foto que depois foi publicada em Registro de uma vivência, autobiografia de Lucio Costa e os dois homens, o fotógrafo com 65 anos, e o arquiteto, com 84, se despediram. Para sempre.

Sob silêncio, os quatro visitantes caminharam até o Fusquinha de Haroldo Pinheiro até que Lucio Costa botou a mão no bolso e sacou três fotografias da construção de Brasília. “Ele roubou a minha escala, e eu roubei as fotos dele”, e sorriu.

É muito provável que essa tenha sido a última grande alegria de Mário Fontenelle, a de ser vítima de um furto praticado por Lucio Costa. Dois anos depois, em 23 de setembro de 1986, morria o fotógrafo que registrou os primeiros movimentos do nascimento de uma cidade e de um país até então apartado de si mesmo. Talvez fosse por ter noção de sua importância histórica e do esquecimento a que havia sido condenado que Mário Fontenelle guardava tanto amargor.

JK, em 1958, na inauguração da placa que homenageia os
construtores do Catetinho, residência provisória do presidente.
Ele nunca tinha sido uma pessoa de fino trato. Quem conviveu com ele de perto, já no período pós-Juscelino, lembra-se de um Fonte (era como os amigos o tratavam) “irascível, grosso, mal-educado, cheio de mania”, conta Guran, um dos fundadores da Ágil e da União dos Fotógrafos, agência de notícias e entidade que, nos anos 80, se aproximaram de Fontenelle para tentar resgastar o valor histórico de seu trabalho. “Ele brigava com todo mundo. Só não brigou comigo porque eu não briguei com ele”, lembra-se Guran.

A queda havia sido grande. Antes considerado “uma autoridade”, como definiu o arquiteto José Manuel Kluft Lopes da Silva em depoimento ao Arquivo Público do Distrito Federal em 1989, Fontenelle havia se transformado num indigente. No acervo que deixou no Lar dos Velhinhos, há registros de dias de muita glória. Conviveu com dois presidentes da República, Juscelino e João Goulart, de quem ganhou duas máquinas fotográficas Laika. Cobriu a posse de JK no Palácio do Catete, tinha acesso aos palácios presidenciais com a facilidade que hoje nem mesmo um ministro de Estado tem. Sentia-se, de algum modo, amigo de Juscelino. “Comigo existia um trato: para ele eu era cego, surdo e mudo”, declarou Fontenelle no conciso depoimento ao Arquivo Público. Ou seja: ele via e ouvia mais do que o necessário para um fotógrafo. Recebia bilhetes de Maria Teresa Goulart, mulher de Jango.

Filho do delta do Parnaíba, Piauí, e de Manoel Moreira Fontenelle e Maria José Dias Fontenelle, Mário fez apenas o curso primário. É o que se depreende pelas letras toscas e grafia incorreta dos muitos de seus reveladores escritos deixados no arquivo de dor (que hoje está guardado no Museu Vivo da Memória Candanga). Antes dos 20 anos, já era mecânico de pista de aviação nos Serviços Aéreos Condor, que mais tarde se transformaria na Cruzeiro do Sul. Na década de 40, mudou-se para o Rio de Janeiro.

Fonte era homem bonito, 1,70m, olhos verdes, rosto anguloso, boca e queixo bem desenhados. Só as orelhas de abano quebravam um pouco a envergadura de galã, mas não o impediram de se casar com Carmen Andréa Paes Leme, em 1945, aos 26 anos. Logo depois, já era mecânico de motores. Em 1946 nasceu a única filha, Sandra Sybila Fontenelle, e, no ano seguinte, se separou da mulher. Dados pontuais que emergiram das caixas de papelão.

Não se sabe em que exato momento Mário Moreira Fontenelle descobriu a fotografia. Mas há o registro de um encontro que mudaria a vida do mecânico de motores. Foi em 1954, quando começou a trabalhar como mecânico do avião do governador de Minas Gerais, Juscelino Kubitschek. Dois anos depois, já carregava uma máquina fotográfica na comitiva do presidente da República. E aterrissava em Brasília com uma Kapsa, amadora, sem controle de velocidade, como conta o jornalista Jarbas Marques, ex-diretor de Patrimônio Histórico e Artístico do DF. Foi com essa máquina que Fontenelle fez a foto “do gesto primário de quem assinala um lugar ou dele toma posse”, nas palavras de Lucio Costa. Jarbas Marques observa que era preciso ter experiência de voo para dar conta de, naquelas condições e com aquele equipamento, fazer a foto do cruzamento dos eixos.

Vale contar que Fontenelle gostava de aquecer o corpo com um destilado. O fotógrafo Wilson Otaviano de Lima contou ao Arquivo Público que Fonte abastecia com cachaça e rum as latinhas de alumínio de filmes fotográficos. Quando lhe perguntavam o que era aquilo, dizia que era “filme líquido”, e ria, lembra-se o fotógrafo André Dusek, do jornal O Estado de S. Paulo.

Os filmes líquidos que confortavam continuamente Mário Fontenelle de nenhum modo o impediram de registrar os momentos mais importantes da construção de Brasília e, mais que isso, o cotidiano dos candangos. Fontenelle tinha “extrema sensibilidade para os assuntos populares”, observa Milton Guran. Basta ver o livro Minha mala, meu destino, publicado em 1988 pela Gráfica Brasiliana para distribuição como brinde aos clientes. Os candangos saem da mala, andam de bicicleta, espremem-se nos refeitórios, carregam vergalhões nos ombros. “Quantas toneladas de ferro este homem transportou do canteiro de obras?”, pergunta Fontenelle em texto que escreveu atrás da foto de um peão de obra.

Era um fotógrafo que registrava suas impressões no verso do papel fotográfico ou em folhas esparsas. Escrevia em letra de forma, textos muitas vezes desconexos, em linhas que iam caindo para a direita, como se estivesse escrevendo e desenhando ao mesmo tempo. Não punha Brasília no cabeçalho. Escrevia “Terra” e registrava o ano em algarismo romano. Também anotava impressões (poemas?) em filmes fotográficos. E guardava uma foto da filha, ainda menina, como se recorda Raquel Cavalcante, coordenadora do Minha mala, meu destino (título tirado de um escrito do próprio Fontenelle).

Todos quantos conviveram de perto com ele sabiam da paixão que tinha pela filha, Sandra Sybila Fontenelle. Costumava contar que ela falava quatro idiomas, o que se comprova em cartas que ela escreveu para o pai e que estão guardadas no Museu Vivo. Cartas de muito amor de um pelo outro e de uma dolorosa aproximação. Na mais antiga delas, de 1979, Sandra manifesta seu ressentimento para com o pai, e de como se sentiu abandonada tanto por ele quanto pela mãe. Um ano depois, é outro o tom da carta. É de reconciliação e de profundo amor pelo pai ausente. Ela o chama de Mário e à mãe, de Carmen Andréa. Conta de um sonho que teve, os dois, pai e filha: “Você estava no Maracanã, entre a multidão, e eu estava dando aula no gramado, depois começo a subir aquelas escadas de cimento, num degrau estava uma bolsa de fotógrafo com um presente para mim, olha, vi você perto, aí nós sorrimos e nos abraçamos diante do estádio cheio…”

É certo, pelo que se depreende das cartas de Sandra ao pai, que eles trocavam confidências e presentes, via postal, no começo dos anos 80. Mas quando a pesquisadora Raquel Cavalcante a procurou no Rio de Janeiro, após a morte de Fontenelle, Sandra não quis muita conversa nem se interessou pelo livro que seria publicado. O Correio tentou localizá-la, na semana passada, mas não conseguiu. Nesta semana, o Museu Vivo da Memória Candanga continuará tentando encontrá-la. Sabe-se, pela internet, que defendeu tese de mestrado em história, em 1990, na Universidade Federal Fluminense. O tema foi o olhar exótico que os estrangeiros têm sobre o Brasil. Pelo que contava nas cartas ao pai, Sandra viajava muito para o exterior a trabalho. Sempre adiava a vinda a Brasília para ver o pai.

Mário Fontenelle não sabia cuidar de si mesmo. “Ele comia muito mal e também não se protegia direito. Naquele tempo fazia muito frio e chovia muito aqui”, conta o jornalista Raimundo Nonato Silva, 90 anos, com quem o fotógrafo trabalhou na revista Brasília. Não se casou novamente, nunca teve uma moradia fixa — viveu durante alguns num quartinho do Hotel das Nações. No início da década de 1960, uma abreugrafia constatou que ele tinha tuberculose. Em 1969, aposentou-se, com a ajuda direta de Lucio Costa, que enviou bilhete ao governo do Distrito Federal, pedindo agilidade na tramitação do pedido.

A maior parte dos objetos que estavam no arquivo de dor estão no Museu Vivo, que mantém exposição contínua do laboratório de Fontenelle. Muitos dos negativos se perderam. Segundo o gerente de Documentação Não-Textual do Arquivo Público, Marcelo Durães, perto de 70% das 4,5 mil fotos da história da construção da cidade são dele.

Três pessoas foram ao enterro de Mário Fontenelle: o amigo e fotógrafo Jankiel Goncvarovska, o fotógrafo Salvio Silva (os dois já falecidos) e o diretor do Patrimônio Artístico e Histórico do GDF, Silvio Cavalcante. Nem uma lápide foi colocada no túmulo.

HOMENAGEM

Com o lançamento de uma série de quinze postais com fotografias de Mário Fontenelle feitas durante a construção da cidade, o Museu Vivo da Memória Candanga e o Arquivo Público do Distrito Federal vão lembrar os 90 anos do fotógrafo. Haverá também uma projeção de fotos e um debate sobre a obra de Fontenelle com a participação dos fotógrafos Joaquim Paiva e Orlando Brito, do arquiteto Silvio Cavalcante e do jornalista Jarbas Marques. No próximo sábado, no Museu Vivo da Memória Candanga, às 15h30. 

Edição do Jornal da Parnaíba | Fonte: Correio Braziliense – Conceição Freitas
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