Mário Fontenelle, Filho do delta do Parnaíba,
Piauí, e de Manoel Moreira Fontenelle e Maria José Dias Fontenelle. Mário Fontenelle fez as fotos mais importantes das obras com máquina dada por JK.
Quando abriu as três ou quatro caixas de papelão,
mala e destino de Mário Fontenelle, a pesquisadora Raquel Cavalcante encontrou “um arquivo de dor”. O amontoado de
equipamentos fotográficos, peças de madeira, papéis (uma infinidade de papéis),
fotos, papel-contato, negativos, slides e estojos de filme fotográfico
revelavam com letras de amargura e de abandono a história do mais importante
fotógrafo da história da construção de Brasília, [o parnaibano Mário Fontenelle].
Fazia bem pouco tempo que ele havia morrido. As
caixas de papelão estavam num canto do Lar dos Velhinhos Maria Madalena, onde
ele passou os três últimos de seus 67 anos. Um pouco antes, atulhavam-se numa
Variant encostada nos jardins do abrigo, lembra-se o fotógrafo Francisco
Gualberto. Todo o Mário Fontenelle cabia dentro de um carro e ele já não tinha
uma perna, a esquerda, amputada por conta de uma gangrena. Sofrera um derrame
que paralisara o lado esquerdo do corpo.
O homem esquelético, cercado de equipamentos
fotográficos e de desilusões, era o autor, nas palavras do fotógrafo e
antropólogo Milton Guran, “da mais
extraordinária fotografia do Brasil moderno, uma imagem seminal que simboliza o
momento em que o brasileiro tomou posse efetiva do seu destino”.
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| Brasília - Cruzamento do Eixo Monumental com o Eixo Rodoviário (foto histórica) |
A foto a que Guran se refere é a do cruzamento do
Eixo Monumental com o Eixo Rodoviário, o Eixão, o sinal da cruz do projeto de
Lucio Costa. “Se Fontenelle não tivesse
feito mais nada no mundo, durante a vida inteira, se tivesse feito só essa
foto, ele já era merecedor de um lugar de primeira grandeza na história da
fotografia brasileira”, continua Guran. “Por
essa cidade passaram centenas de fotógrafos (durante a construção), mas só um
teve o acaso, a sorte, a percepção e a presença de espírito de dizer ao cara do
avião: ‘Volta, que eu vou fazer essa foto!”.
Era esse o homem que esperava a morte no Lar dos
Velhinhos e que completaria 90 anos de nascimento no próximo 29, sexta-feira, e
que será [foi] homenageado pelo Museu Vivo da Memória Candanga e pelo Arquivo
Público do Distrito Federal.
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Palácio da Alvorada, primeiro edifício de
Brasília - A foto foi
feita um mês antes da inauguração do prédio, pelo
fotógrafo
Mário Fontenelle e faz parte do Arquivo Público do DF
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À espera de nada além do que viria depois do fim,
Fontenelle recebeu uma inimaginável visita num dia da segunda quinzena de
novembro de 1984. Depois de dez anos sem vir a Brasília, Lucio Costa voltou à
cidade que inventou. Como sempre se faz quando se reencontra um lugar ou alguém
que ficou marcado em nossas vidas, doutor Lucio quis saber do destino de
pessoas que lhe tinham sido importantes. Perguntou por Mário Fontenelle e soube
que ele estava num asilo. Quis visitá-lo.
Numa manhã, cedinho, Lucio Costa, os arquitetos
Haroldo Pinheiro, Adeildo Viega de Lima e Maria Elisa Costa rumaram para o
Maria Madalena. Entraram no quarto 18, que Fontenelle dividia com dois outros
velhos. O fotógrafo não sabia da visita. “Quando
ele viu doutor Lucio entrando no quarto ficou perplexo, mas imediatamente
começou a conversar. Me lembro que ele já estava com dificuldades de movimento
de um braço (o esquerdo), mas deitado na cama conseguia achar tudo o que
queria. Foi sacando mochilas de debaixo da cama e tirando fotos. Num
determinado momento, puxou uma escala (régua triangular usada em arquitetura).
Ela já estava amarelada pelo tempo”, contou Pinheiro.
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Juscelino Kubitschek, presidente da República, e o
urbanista Lúcio Costa, no marco zero do Eixo Monumental. Por Mário Fontenelli.
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“O senhor se
lembra disso?”, perguntou Fontenelle. “É
uma régua de escala”, respondeu Lucio Costa, sem entender muito bem a razão
do objeto e da pergunta. “Roubei do
senhor na Novacap e até hoje guardo de lembrança do senhor.” Caiu um
silêncio sobre o quarto. Quase encostados na parede, paralisados, como se
assistissem a uma celebração, estavam os três acompanhantes de Lucio Costa.
Conversaram um pouco mais, Maria Elisa fez a foto que depois foi publicada em
Registro de uma vivência, autobiografia de Lucio Costa e os dois homens, o
fotógrafo com 65 anos, e o arquiteto, com 84, se despediram. Para sempre.
Sob silêncio, os quatro visitantes caminharam até o
Fusquinha de Haroldo Pinheiro até que Lucio Costa botou a mão no bolso e sacou
três fotografias da construção de Brasília. “Ele
roubou a minha escala, e eu roubei as fotos dele”, e sorriu.
É muito provável que essa tenha sido a última
grande alegria de Mário Fontenelle, a de ser vítima de um furto praticado por
Lucio Costa. Dois anos depois, em 23 de setembro de 1986, morria o fotógrafo
que registrou os primeiros movimentos do nascimento de uma cidade e de um país
até então apartado de si mesmo. Talvez fosse por ter noção de sua importância
histórica e do esquecimento a que havia sido condenado que Mário Fontenelle
guardava tanto amargor.
JK, em 1958, na inauguração da placa que homenageia
os
construtores do Catetinho, residência provisória do presidente.
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Ele nunca tinha sido uma pessoa de fino trato. Quem
conviveu com ele de perto, já no período pós-Juscelino, lembra-se de um Fonte
(era como os amigos o tratavam) “irascível,
grosso, mal-educado, cheio de mania”, conta Guran, um dos fundadores da
Ágil e da União dos Fotógrafos, agência de notícias e entidade que, nos anos
80, se aproximaram de Fontenelle para tentar resgastar o valor histórico de seu
trabalho. “Ele brigava com todo mundo. Só
não brigou comigo porque eu não briguei com ele”, lembra-se Guran.
A queda havia sido grande. Antes considerado “uma autoridade”, como definiu o
arquiteto José Manuel Kluft Lopes da Silva em depoimento ao Arquivo Público do
Distrito Federal em 1989, Fontenelle havia se transformado num indigente. No
acervo que deixou no Lar dos Velhinhos, há registros de dias de muita glória.
Conviveu com dois presidentes da República, Juscelino e João Goulart, de quem
ganhou duas máquinas fotográficas Laika. Cobriu a posse de JK no Palácio do
Catete, tinha acesso aos palácios presidenciais com a facilidade que hoje nem
mesmo um ministro de Estado tem. Sentia-se, de algum modo, amigo de Juscelino. “Comigo existia um trato: para ele eu era
cego, surdo e mudo”, declarou Fontenelle no conciso depoimento ao Arquivo
Público. Ou seja: ele via e ouvia mais do que o necessário para um fotógrafo.
Recebia bilhetes de Maria Teresa Goulart, mulher de Jango.
Filho do delta do Parnaíba, Piauí, e de Manoel
Moreira Fontenelle e Maria José Dias Fontenelle, Mário fez apenas o curso
primário. É o que se depreende pelas letras toscas e grafia incorreta dos
muitos de seus reveladores escritos deixados no arquivo de dor (que hoje está
guardado no Museu Vivo da Memória Candanga). Antes dos 20 anos, já era mecânico
de pista de aviação nos Serviços Aéreos Condor, que mais tarde se transformaria
na Cruzeiro do Sul. Na década de 40, mudou-se para o Rio de Janeiro.
Fonte era homem bonito, 1,70m, olhos verdes, rosto
anguloso, boca e queixo bem desenhados. Só as orelhas de abano quebravam um
pouco a envergadura de galã, mas não o impediram de se casar com Carmen Andréa
Paes Leme, em 1945, aos 26 anos. Logo depois, já era mecânico de motores. Em
1946 nasceu a única filha, Sandra Sybila Fontenelle, e, no ano seguinte, se
separou da mulher. Dados pontuais que emergiram das caixas de papelão.
Não se sabe em que exato momento Mário Moreira
Fontenelle descobriu a fotografia. Mas há o registro de um encontro que mudaria
a vida do mecânico de motores. Foi em 1954, quando começou a trabalhar como
mecânico do avião do governador de Minas Gerais, Juscelino Kubitschek. Dois
anos depois, já carregava uma máquina fotográfica na comitiva do presidente da
República. E aterrissava em Brasília com uma Kapsa, amadora, sem controle de
velocidade, como conta o jornalista Jarbas Marques, ex-diretor de Patrimônio
Histórico e Artístico do DF. Foi com essa máquina que Fontenelle fez a foto “do gesto primário de quem assinala um lugar
ou dele toma posse”, nas palavras de Lucio Costa. Jarbas Marques observa
que era preciso ter experiência de voo para dar conta de, naquelas condições e
com aquele equipamento, fazer a foto do cruzamento dos eixos.
Vale contar que Fontenelle gostava de aquecer o
corpo com um destilado. O fotógrafo Wilson Otaviano de Lima contou ao Arquivo
Público que Fonte abastecia com cachaça e rum as latinhas de alumínio de filmes
fotográficos. Quando lhe perguntavam o que era aquilo, dizia que era “filme líquido”, e ria, lembra-se o
fotógrafo André Dusek, do jornal O Estado de S. Paulo.
Os filmes líquidos que confortavam continuamente
Mário Fontenelle de nenhum modo o impediram de registrar os momentos mais
importantes da construção de Brasília e, mais que isso, o cotidiano dos
candangos. Fontenelle tinha “extrema
sensibilidade para os assuntos populares”, observa Milton Guran. Basta ver
o livro Minha mala, meu destino, publicado em 1988 pela Gráfica Brasiliana para
distribuição como brinde aos clientes. Os candangos saem da mala, andam de
bicicleta, espremem-se nos refeitórios, carregam vergalhões nos ombros. “Quantas toneladas de ferro este homem
transportou do canteiro de obras?”, pergunta Fontenelle em texto que
escreveu atrás da foto de um peão de obra.
Era um fotógrafo que registrava suas impressões no
verso do papel fotográfico ou em folhas esparsas. Escrevia em letra de forma,
textos muitas vezes desconexos, em linhas que iam caindo para a direita, como
se estivesse escrevendo e desenhando ao mesmo tempo. Não punha Brasília no
cabeçalho. Escrevia “Terra” e
registrava o ano em algarismo romano. Também anotava impressões (poemas?) em
filmes fotográficos. E guardava uma foto da filha, ainda menina, como se
recorda Raquel Cavalcante, coordenadora do Minha mala, meu destino (título
tirado de um escrito do próprio Fontenelle).
Todos quantos conviveram de perto com ele sabiam da
paixão que tinha pela filha, Sandra Sybila Fontenelle. Costumava contar que ela
falava quatro idiomas, o que se comprova em cartas que ela escreveu para o pai
e que estão guardadas no Museu Vivo. Cartas de muito amor de um pelo outro e de
uma dolorosa aproximação. Na mais antiga delas, de 1979, Sandra manifesta seu
ressentimento para com o pai, e de como se sentiu abandonada tanto por ele
quanto pela mãe. Um ano depois, é outro o tom da carta. É de reconciliação e de
profundo amor pelo pai ausente. Ela o chama de Mário e à mãe, de Carmen Andréa.
Conta de um sonho que teve, os dois, pai e filha: “Você estava no Maracanã, entre a multidão, e eu estava dando aula no
gramado, depois começo a subir aquelas escadas de cimento, num degrau estava
uma bolsa de fotógrafo com um presente para mim, olha, vi você perto, aí nós
sorrimos e nos abraçamos diante do estádio cheio…”
É certo, pelo que se depreende das cartas de Sandra
ao pai, que eles trocavam confidências e presentes, via postal, no começo dos
anos 80. Mas quando a pesquisadora Raquel Cavalcante a procurou no Rio de
Janeiro, após a morte de Fontenelle, Sandra não quis muita conversa nem se
interessou pelo livro que seria publicado. O Correio tentou localizá-la, na
semana passada, mas não conseguiu. Nesta semana, o Museu Vivo da Memória
Candanga continuará tentando encontrá-la. Sabe-se, pela internet, que defendeu
tese de mestrado em história, em 1990, na Universidade Federal Fluminense. O
tema foi o olhar exótico que os estrangeiros têm sobre o Brasil. Pelo que
contava nas cartas ao pai, Sandra viajava muito para o exterior a trabalho.
Sempre adiava a vinda a Brasília para ver o pai.
Mário Fontenelle não sabia cuidar de si mesmo. “Ele comia muito mal e também não se
protegia direito. Naquele tempo fazia muito frio e chovia muito aqui”,
conta o jornalista Raimundo Nonato Silva, 90 anos, com quem o fotógrafo
trabalhou na revista Brasília. Não se casou novamente, nunca teve uma moradia
fixa — viveu durante alguns num quartinho do Hotel das Nações. No início da
década de 1960, uma abreugrafia constatou que ele tinha tuberculose. Em 1969, aposentou-se,
com a ajuda direta de Lucio Costa, que enviou bilhete ao governo do Distrito
Federal, pedindo agilidade na tramitação do pedido.
A maior parte dos objetos que estavam no arquivo de
dor estão no Museu Vivo, que mantém exposição contínua do laboratório de
Fontenelle. Muitos dos negativos se perderam. Segundo o gerente de Documentação
Não-Textual do Arquivo Público, Marcelo Durães, perto de 70% das 4,5 mil fotos
da história da construção da cidade são dele.
Três pessoas foram ao enterro de Mário Fontenelle:
o amigo e fotógrafo Jankiel Goncvarovska, o fotógrafo Salvio Silva (os dois já
falecidos) e o diretor do Patrimônio Artístico e Histórico do GDF, Silvio
Cavalcante. Nem uma lápide foi colocada no túmulo.
HOMENAGEM
Com o lançamento de uma série de quinze postais com
fotografias de Mário Fontenelle feitas durante a construção da cidade, o Museu
Vivo da Memória Candanga e o Arquivo Público do Distrito Federal vão lembrar os
90 anos do fotógrafo. Haverá também uma projeção de fotos e um debate sobre a
obra de Fontenelle com a participação dos fotógrafos Joaquim Paiva e Orlando
Brito, do arquiteto Silvio Cavalcante e do jornalista Jarbas Marques. No
próximo sábado, no Museu Vivo da Memória Candanga, às 15h30.
Edição do Jornal da
Parnaíba | Fonte: Correio Braziliense – Conceição Freitas
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